Há escassos dias celebrou-se (enfim, quem quis celebrar…) o Dia do Irmão do Meio. Há dias para tudo e, se calhar, até o “Dia Disso e Mais um Par de Botas”, e do vizinho ao amigo, da rotação da Terra ao ambiente e até ao riso, ao puzzle ou ao mágico (já sem mencionar o Dia das Zonas Húmidas, celebrado a 2 de fevereiro) está o calendário cheio. Há dias, como o 21 de março, que são dias de vários dias, de causas tão diversas como a síndroma de Down ou a poesia, a árvore ou a discriminação racial.
Confesso que ligo pouco a estes dias (até me irritam, embora não tanto como o inefável 14 de fevereiro), embora possa reconhecer em alguns um certo significado simbólico e uma janela de oportunidade para se falar de temas que ou estão desaparecidos dos média e da cabeça das pessoas, ou são tão banais que nem nos lembramos deles e que precisam de ação e de medidas.
Pois é: fiquei a saber, este ano, que o 12 de agosto era o Dia do Irmão do Meio. Um bocadinho tosco, acho. Porque reconhecer um “irmão do meio” é reconhecer que é um “ET na fratria”, o que não deixa de ser… tosco, do ponto de vista científico e social. Bom, a única coisa que me ocorre de positivo relativamente a este dia é constatar que, pelo menos em intenções (que, dizem, enchem o inferno), se projetam mais filhos – pelo menos três. O pior é se o número for par: quatro, seis, oito… qual é o do meio? Por outro lado, se – ainda por cima em pleno agosto – esse dia tiver sido motivo para um gelado extra para o dito cujo irmão, acho que já valeu a pena.
Mas já que falamos do assunto, abordemos então o “caso do irmão do meio”, que bem podia ser o título de um livro de Agatha Christie ou de Georges Simenon.
É sempre um risco generalizar, tanto mais porque, com as chamadas recomposições familiares e famílias de várias “gerações” de filhos, o do meio nem sempre é o do meio, o que coloca um problema interessante do ponto de vista de “definição de caso”. Posto isto, e para que não sintam que sou demasiado cínico, vou conceder que há algumas características que podem ser atribuídas ao do meio: quando nasce o terceiro, o do meio poderá ficar um bocado entalado, com aquilo a que costumo chamar a síndroma da mortadela da sanduíche. Habitualmente, relativamente ao primeiro, quando nasce um irmão, a solução desse mais velho é crescer, ficar mais distanciado do bebé e, se os pais e adultos o ajudarem a promover-se, assume–se como “chefe de serviço” relativamente a esse “estagiário”. Como é o mais velho, tem “autoestrada” para crescer. Quanto ao do meio, quando nasce um irmão mais novo fica ensanduichado. Não pode crescer muito porque bate com o nariz nas costas do mais velho nem lhe convém vir para trás e dar luta ao bebé porque obviamente que perde com esse profissional da bebezice: resultado, fica com uma margem muito estreita de manobra. A solução encontrada pelos irmãos do meio, e melhor ainda se for estimulada pelos pais (desde que ele próprio ainda era bebé), é identificar-se, ter a noção (que todas as crianças devem ter) de que é único, imprescindível, insubstituível e importante, e tentar explorar as suas próprias competências, a sua individualidade e as virtudes e talentos diferentes dos dos irmãos, o que deverá acontecer, aliás, com todas as crianças.
É por isso que os irmãos do meio tendem a ser ponderados, a posicionar-se entre os extremos que caracterizam os outros (algum complexo de superioridade e hiperresponsabilidade do mais velho e algum culto da infantilidade e “bebezismo” do mais novo) e a desenvolver um espírito próprio, por vezes um bocadinho individualista mas, ao mesmo tempo, generoso, pensando nos outros dois. Um fiel da balança que pode passar por vezes impercetível para os pais e remeter as crianças para uma posição “cinzenta” em que passam entre os pingos da chuva ou de quem se espera sempre essa tal ponderação, fenómeno a que os pais devem estar atentos.
Todavia, retomo a pergunta: nas novas gerações há irmãos do meio? O INE “diz” que “alguns”. Nas sociedades onde se desenharam políticas de natalidade e de apoio às grávidas, crianças e famílias, o terceiro filho surgiu rapidamente: Escandinávia, França, Holanda, Reino Unido… claro que, atualmente, quem tem um terceiro filho (ou mais) são sobretudo casais de classe média, com maior poder de compra, mas – igualmente importante -casais que fazem da vida uma coisa prática, simples, que não complicam e, igualmente, pais que sabem que não podem ter tudo e que não poderão dedicar-se totalmente aos filhos, à carreira, aos amigos, à vida social, como se o dia tivesse 240 horas, a vida não fosse finita e rodeada de muitas circunstâncias e a nossa paciência e disponibilidade fossem ilimitadas.
Os tempos não estão fáceis, sobretudo no que se refere à habitação e aos infantários, para lá dos apoios familiares que escasseiam; todavia, há muita gente que complica, que faz da vida uma “lista de compras” incomensurável e que acha que para ter um bebé é preciso ter “o enxoval do príncipe de Gales”. São sinais de um mundo narcisista, exibicionista e baseado em sinais exteriores de riqueza que muita gente ainda cultiva. Para muitos, os filhos servem para esse desígnio, um show-off social…
Portugal é um dos países com a mais baixa taxa de natalidade do mundo, e as razões são óbvias. Há uma parte que pode ser feita para aumentar a natalidade pelos pais – se for esse o desejo dos pais, porque ter filhos é uma decisão íntima, de duas pessoas, e ninguém, nem o Estado, pode ou deve interferir ou emitir juízos de valor sobre o assunto -, que consiste em cultivar a simplicidade e a frugalidade, não se deixando arrastar por materialismos. Quanto ao Estado, tem a obrigação de desenvolver políticas e programas integrados multidisciplinares de apoio às crianças e às famílias. Há mais de 30 anos que ando a pregar isto, mas ainda não desisti – estou disponível para ajudar, quer o governo, quer a Presidência da República. Pode ser que seja desta.
Até lá, irmão mais velho, do meio ou mais novo, filho único ou membro de família numerosa, que fique bem ciente de que cada criança é única, insubstituível, irrepetível e com o seu temperamento, estruturação, talentos, gostos, maneiras de ser e tudo o mais. Definir “o do meio” é, repito, quase como identificar o ET… e depois eles querem é, como o do filme, “go home” e fugir da maluqueira dos adultos, que já não sabem o que hão de inventar.
Pediatra
Escreve à terça-feira