21 de Agosto de 1972.  Era Águeda e ardia, do lugar das Chãs à Maçoida…

21 de Agosto de 1972. Era Águeda e ardia, do lugar das Chãs à Maçoida…


O fogo começara em Poço de Santiago, Sever do Vouga. Havia quem culpasse o Vale de Vouga, que tinha a alcunha de “queima-fatos”: uma faúlha atingira a mata seca por entre pinheiros e eucaliptos. A partir daí foi a “resineira” que deixou gente acordada dias e noites a fio


Agosto e fogo parecem palavras gémeas em Portugal.

Ano após ano, após ano.

A memória guarda incêndios terríveis, assassinos, destruidores como uma horda de hunos.

Quem já esteve dentro de um, sabe como é: subitamente um vento e as árvores ardem que parecem vimes ou palha seca. O povo, esse, sofre. Casas em perigo, animais mortos, terrenos esturricados.

Podemos falar de tantos e tantos fogos em agosto. E em Águeda.

Águeda vive entre duas tragédias por ano: os incêndios de Verão e as cheias de Inverno. Pinheiros e eucaliptos ganham a tonalidade de vermelho por entre as labaredas. O rio teima em quebrar barreiras, em invadir as ruas, em irromper pelas habitações.

No final de agosto de 1972, o fogo era notícia: outra vez.

Bombeiros vindos de todo o distrito de Aveiro concentravam-se no combate a um exército de chamas. O Préstimo e as Talhadas estavam em perigo. No centro de todos os perigos. A luta era desigual. A água escassa. Ah! A injustiça das intempéries: a água que tomaria conta da cidade daí a poucos meses, agora não existe que chegue. Muitos desesperam por Deus: “Não entendo esta injustiça… Estou à beira de perder tudo aquilo por que trabalhei toda a vida. Bem rogo ao Senhor que me ajude, mas nada. Do céu só vem calor. Este calor impossível!”

Culpavam-se as faúlhas do Vale de Vouga, o Vouguinha, comboio de via reduzida que ligou, em tempos que lá vão, Aveiro a Viseu e não passa, agora, de uma espécie de metro de superfície entre Aveiro e Águeda. Chamavam-lhe o “queima-fatos” quando era puxado por uma locomotiva a carvão. E, no Verão, queimava tudo em seu redor.

O incêndio tivera início no lugar de Poço de Santiago, em Sever do Vouga. Em poucas horas, alastrou-se pelas florestas dos concelhos vizinhos: Albergaria-a-Velha e Águeda.

Um vento de nordeste soprara as chamas na direcção de Águeda e Albergaria-a-Velha, mais a norte, cedo ficou a salvo. Os bombeiros podiam, portanto, concentrar-se no combate sem quartel.

Em Arrancada do Vouga gritava-se por socorro: “É horrível, isto! Tantos sacrifícios que fiz. Não tenho vontade nenhuma de refazer a minha vida. Pelo contrário. Apetece-me desistir. Tudo ardeu. A casa, os porcos, a cevada, o centeio, o azeite, as madeiras e as videiras. Tenho 11$50 no bolso”. Quem assim falava era Augusto Pereira da Silva, do lugar das Chãs. “O Destino bem que foi cruel comigo!”.

O destino do fogo: como se tivesse de ser uma inevitabilidade. Será? Será uma maldição que vem com o vento quente que sopra do norte de África e derrete as almas num bafo de dragão?

Talvez haja alguém que reze a São Jorge, embora esse não seja um santo de grande devoção nacional…

O combate. Mais de mil pessoas cerram fileiras: bombeiros, civis e militares. Vinte corporações. Elementos da Defesa Civil do Território. Soldados vindos de Aveiro. Dez aviões da Força Aérea, da base de São Jacinto, um helicóptero dos Serviços Florestais.

Um alívio: não havia vítimas a lamentar. Apenas um ferido, alguns bombeiros sofrendo de intoxicação. O fumo em colunas grossas no céu até aí tão azul.

O fogo vai procurando fugas: dirige-se a A-dos-Ferreiros, chegou a ter uma frente de quatro quilómetros, as chamas atingem cinquenta, sessenta metros de altura. Toda a floresta entre Rompefilhas e Vale de Mulher está transformada em carvão.

Maçoida é um braseiro.

Soutelo, Moito, Brunhido, Redonda, Samouca e Salgueiro vivem horas de aflição.

O terreno acidentado ia atrapalhando o avanço dos combatentes. O fogo não se preocupa com morros nem com ravinas. Tudo para ele é um atalho.

Prejuízos incalculáveis.

A luta de um povo triste.

Os lamentos de Augusto: “Não tinha telefone, não foi possível alertar os bombeiros a tempo. Saí de casa a correr, nem me lembrei de trazer comigo o casaco e tinha no bolso de dentro 23 contos em dinheiro. Era o dinheiro do pagamento dos homens que trabalham no meu pinhal. Ou no que era o meu pinhal. Já não existe. Ainda abri uma vala, mas os meus poços são pouco fundos, não têm água que chegue, não pude fazer mais nada. Foi um inferno. Queria esquecer de vez aquele martírio. Antigamente, dava-me ao luxo de escolher os pastos. Fiquei sem nada para alimentar o gado. O pouco gado que me resta”.

Um homem correu de casa em casa, reunindo as crianças. Levou-as em bando para Macinhata do Vouga.

Outro encheu as bombas de sulfatar com água e atirou-se às labaredas.

Tito Valonas, bombeiro da Pampilhosa, não tinha um minuto de descanso: “É sempre a mesma coisa. Anteontem estava no combate aos fogos a mais de trinta quilómetros daqui. Vem esta resineira que nos deixa noites e noites sem dormir”.

E subia o monte pelo qual se espalhava já gente com moto-serras na tentativa de abrir zonas livras que estancassem a correria das chamas. Mas há sempre gente injusta, mal agradecida: os bombeiros são insultados por um proprietário irritado com o corte dos seus pinheiros.

Às seis horas da manhã parecia que surgiriam umas tréguas. Engano. O vento voltou a soprar com força arrastando as chamas consigo. Ninguém dorme nos arredores de Águeda…