Quando foi abordado pelos dois agentes da PSP, de madrugada, Afonso terá ficado confuso. “Terá” porque, como decidiu faltar ao próprio julgamento, o juiz, o Procurador do Ministério Público e a jornalista (permitam-me) ficaram impossibilitados, até ao dia de hoje, de conhecer as verdadeiras razões de tamanha confusão. Terá sido nervosismo e falta de jeito com as palavras? Às tantas foi apenas uma questão de privação de sono, que a madrugada ia alta e é científico que não dormir dá para o disparate: aos bocadinhos, a realidade transforma–se numa sucessão de slides sombrios e muito mal-amanhados, de maneira que uma pessoa tem de estar permanentemente de pé atrás e a corrigir-se, a si e à própria sombra. Na verdade, se a privação do sono fosse natural, provavelmente ninguém pararia para dormir – é o desperdício de tempo; são as dores de costas decorrentes das várias horas seguidas de imobilização; é o mau hálito ao acordar, com efeitos de desastre humanitário semelhantes ao de um ataque químico capaz de dizimar um batalhão inteiro de homens armados; é a angústia profunda e profusamente causadora de AVC provocada pelo despertador a gritar como se não houvesse amanhã [e agora já não há mesmo amanhã, não é?, porque amanhã agora é hoje e hoje era tão bom se fosse amanhã]. Recentremos a crónica. Por uma qualquer razão que, provavelmente, nunca virá a ser concretamente apurada, Afonso espalhou-se ao comprido assim que os agentes da PSP lhe bateram no vidro do carro. E espalhou-se mais do que uma vez. Na verdade, e para sermos rigorosos, foram tantos os espalhos que, se se tratasse de coisas físicas, a cena ter-se-ia assemelhado às convulsões de um ataque epilético. Primeiro, Afonso teve dificuldade em recordar-se que se chamava Afonso [o que acabou por ditar a entrada em cena do alcoolímetro que, surpreendentemente, deu negativo, com os polícias semiboquiabertos e desconfiados]. Depois, Afonso não soube dizer quem era o proprietário do carro onde se encontrava a dormitar, descuidada e apressadamente estacionado num descampado isolado. “Começou por dizer que era dele, mas a seguir já não era, senhora doutora juíza, e nunca chegou a esclarecer por que razão nos mentiu”, desbronca-se o agente Furtado, um dos responsáveis pela interrupção do sono de Afonso. O segundo polícia, que responde pelo nome de agente Vicente, prossegue com a descrição, ainda que num tom algo mais misterioso, relatando pormenorizadamente como o carro estava parado num “local altamente suspeito”.
Mas o espalho maior veio a seguir. Afonso começou por confessar que não trazia os documentos do carro mas, poucos segundos e um tabefe desajeitado na própria cabeça depois (au!), lá acabou por se lembrar que, afinal, estariam no porta-luvas. E atirou-se, ato contínuo, para cima do lugar do pendura. Só que, fruto da pressa ou da pressão no interior do cubículo, assim que a portinhola se abriu, uma faca-borboleta saiu de lá de dentro a voar. “E então foi assim que apareceu a arma”, conclui o agente Furtado. “Uma faca com lâmina que roda e que é suscetível de ser letal”, detalha o agente Vicente. Espalho aqui, espalho ali, Afonso acabou espalhado na esquadra. E, julgado à revelia, foi condenado a 500 euros de multa por detenção de arma proibida. Desajeitado com as palavras, às tantas achou que a faca era uma borboleta. E não uma faca-borboleta.