A nossa relação coletiva com o erro


Em Portugal, no erro pode haver recriminação moral-religiosa, verborreia mediática ou das redes sociais, até um “agarrem-me senão vou-me a eles”, mas são raros os casos em que os clamorosos falhanços implicam consequências


O erro devia ser parte do processo construtivo, criativo e de apuramento de soluções, mas, em Portugal, assume contornos singulares. Por um lado, no quadro de referência moral-religioso é diabolizado como pecaminoso, mas nas dinâmicas sociais, políticas e económicas é acomodado com uma recorrente indiferença, que em nada contribui para a afirmação da sua visão construtiva (tentativa/erro/aprendizagem/solução). O erro é desculpável, ponto. É claro que a situação muda de figura em função dos protagonistas e das circunstâncias. Nesse contexto, o erro deve ser de geometria variável para acomodar as consciências e os interesses particulares, mesmo quando são lesivos dos mais relevantes interesses gerais. Em Portugal, no erro pode haver recriminação moral-religiosa, verborreia mediática ou das redes sociais, até um “agarrem-me senão vou-me a eles”, mas são raros os casos em que os clamorosos falhanços implicam consequências e incorporação no modelo de funcionamento da sociedade. Tarda a ser reconhecido, raramente é assumido e, por regra, não é penalizado, mesmo que seja um ativo de quem se move na sociedade a contar com os erros. Há quem viva à conta dos erros, organizando respostas para viver e sobreviver à conta dos erros dos governos, das instituições, das empresas e da sociedade.

Estamos permanentemente numa relação com o erro, para o desculpar, em vez de aprendermos com ele. E mesmo quando somos forçados a extrapolar qualquer coisinha de consequência, não hesitamos em prosseguir a deriva desculpabilizante em relação ao que corre mal. Quando um incêndio ganha a dimensão do incêndio de Monchique, não se conseguindo contê-lo no ataque inicial, não é aceitável que a análise dos responsáveis políticos possa ser que ao menos não houve mortes. Ao menos, as mortes dos incêndios de 2017 nunca deveriam ser termo de comparação para situações operacionais posteriores em que há coisas que não correram bem. Ou estamos conformados com, no quadro das operações realizadas, alguém ter mandado evacuar a população de Nave Redonda, no concelho de Odemira, quando se deveria ter evacuado a população de Nave, no concelho de Monchique. Quis a sorte ou o acaso que o nível de risco naquela localidade em Monchique não resultasse em danos pessoais.

É por isso que o erro não pode ser negligenciável nem perdoável, como se alguns pudessem ser agraciados com uma amnistia vitalícia ou um salvo conduto para poderem errar ad eternum.

É por isso que o erro não pode ter a geometria variável que faz com quem berrava com os governos no passado agora se conforme num ensurdecedor silêncio, porque são parte da solução de poder, e quem errava no passado agora seja pródigo em apontar o dedo, numa espiral em que já nem os dedos dos pés chegam para tanta falta de memória.

É por isso que, entre o erro como pecado, inculcado pela formação religiosa cristã, e o erro desculpabilizado pelo exercício dos poderes, pelo conformismo dos cidadãos e dos media e pelas geometrias variáveis, tem de ter um ponto de equilíbrio, colocando-o como parte do processo construtivo, não permita a sua reiterada reativação. Aconteceu, pronto!

Da mesma forma que, como povo, somos relapsos a incorporar os riscos nas nossas vidas e nas vivências comunitárias, somos demasiado soporíferos a posicionar o erro no lugar em que ele deve ser colocado e a exigir as adequadas consequências quando resulta da incompetência, da incúria ou de circunstâncias que eram previsíveis.

Na proteção civil como em demasiadas áreas das funções do Estado continuamos com um chorrilho de situações de elevado risco assente em erros, alguns evidentes, que são negligenciados só porque as coisas vão correndo sem problemas de maior. Quando o termo de comparação é o da salvaguarda das vidas humanas percebe-se a dimensão da margem de desculpabilização que se pretende consolidar. Gera-se um quadro minimalista para depois qualquer pequeno ganho ser uma vitória e se não chegar compara-se com a referência maior da salvaguarda da vida humana. Digamos que é poucochinho.

NOTAS FINAIS

Quebradiça. A polémica estival do convite a Le Pen para a Web Summit só sublinha que quando nos colocamos nas mãos de alguns estamos sujeitos ao que gostamos e ao que não gostamos, no limite a divórcios mais ou menos litigiosos com quem andámos a endeusar. Aplica-se à Web Summit como às celebridades internacionais radicadas em Lisboa. Sublinha ainda que, para alguns, só interessa mesmo é o bife do lombo dos privados, ainda que no caso presente com o conforto de 1,3 milhões de euros dos contribuintes portugueses.

Dobradiça. A possibilidade de ter estado no Festival Meo Sudoeste, como externo não acampado, permitiu-me constatar que há todo um conjunto de realidades sociais a escaparem a boa parte dos decisores políticos, dos decisores económicos e da população portuguesa. Algumas são realidades como as que tivemos no nosso tempo de juventude, mas há realidades a exigirem atenção no sentido de as incorporar como parte das dinâmicas geradas por uma geração focada nas redes sociais e no digital. São realidades com impactos no modelo e na organização da sociedade.

Abaladiça. Ao deixar mais um ano de férias na pacatez do Almograve, sublinho a persistência de realidades insustentáveis como a falta de pessoas para trabalhar, o estado deplorável de boa parte das infraestruturas rodoviárias e uma reiterada tendência para se fazerem intervenções de requalificação do território, sem assegurar a manutenção das mesmas. Há Litoral, a precisar da mesma atenção acrescida e ações concretas de que precisa o Interior.

 

Escreve à quinta-feira