Karuna. O fogo levou as paredes, mas não apagou o sonho de um mundo melhor

Karuna. O fogo levou as paredes, mas não apagou o sonho de um mundo melhor


Um centro de retiros e meditação no meio da Serra de Monchique ardeu completamente. A seguir à passagem da tempestade de lume, é agora tempo de reconstruir o que se perdeu. E até a água já voltou a brotar das fontes de Karuna 


Pouco antes de o lume chegar, um grupo de 40 pessoas tinha terminado um retiro de silêncio e de meditação que durou vários dias. Por isso, ao final da tarde de domingo só estavam no Centro Karuna, na Serra de Monchique, cerca de uma dezena de visitantes, que se preparavam para iniciar um período de retiro individual. Mas a experiência de introspeção e de silêncio não chegou a começar: Karuna foi dos primeiros lugares a serem varridos pelo mar de chamas que, durante quase uma semana, destruíram 27 mil hectares da serra algarvia.

Quando o fogo se começou a avistar, ainda ao longe, das janelas panorâmicas da maior sala de meditação do centro – de onde se viam quilómetros e quilómetros de montes e de vales até à linha de horizonte -, Ana Ferraz, responsável pelo centro, pressentiu que o melhor era ir embora. Mesmo assim, insistiu em cumprir os horários, que em Karuna são rigorosos. Às 19 horas em ponto, serviu o jantar aos visitantes. Depois, organizou-os por pequenos grupos e, em conjunto, regaram as paredes do templo e dos restantes edifícios. Também recolheram as botijas de gás, que atiraram para dentro de tanques. Procuraram por uma vizinha e só depois saíram, num pequeno cortejo de carros, rumo a Monchique. 

O que aconteceu a seguir não terá sido presenciado por ninguém, mas em menos de nada o Centro de Retiros Karuna (que significa “compaixão” e que foi fundado há 25 anos) ficou reduzido a cinzas, a entulho, telhas e pedras desorganizadas. Perante um caos assim, há uma pergunta que inquieta. Como é que quem medita e leva a vida com calma pode lidar com uma perda assim? Ana Ferraz fala em recomeços e na “naturalidade” que existe em todos os finais. Mas também reconhece que houve “falhas” no terreno impossíveis de esquecer ou de calar. A começar pelo ordenamento da floresta. Na Serra de Monchique, a grande viragem na paisagem aconteceu em 2003, a seguir aos grandes incêndios. Os montes nunca chegaram a recompor-se. “Existia um grande equilíbrio na natureza, com um ou outro eucalipto e um outro pinheiro, mas inseridos em floresta de árvores autóctones com sobreiros e medronheiros. A serra era muito mais verde”, recorda Ana. 

Há 15 anos, os terrenos à volta de Karuna também arderam, mas os edifícios salvaram-se e graças a um golpe de sorte. No preciso momento em que o centro ia ser engolido pelas chamas, uns canadair passaram por ali, os pilotos aperceberam-se que em baixo havia casas e apagaram o lume. Desde então, os eucaliptos foram conquistando espaço nos arredores, aos bocadinhos. E essa presença imposta e que tomou conta de quase todos os pedaços de terra deixa muito pouco zen quem por ali vive. “A destruição e o fogo podem ser algo de natural, mas o que não é natural é o que o ser humano faz com a natureza, com o ordenamento da floresta, o afastamento das zonas rurais, a ganância do dinheiro e dos que governam”, aponta a responsável por Karuna. 

Também no que diz respeito ao combate, Ana Ferraz diz ter visto “demasiada impotência desesperada e causada pela estupidez e pela cegueira humana”. Na noite de domingo, e depois de ter rumado a casa, que fica numa das encostas da vila de Monchique, ainda teve de enfrentar uma segunda vaga de lume, a ameaçar-lhe a vivenda. Chovia lume e, descalça, desceu à vila e entrou pelo comando da Proteção Civil adentro, aos gritos e a pedir ajuda. “Estavam dez homens sentados e uns computadores. Nenhum deles era de Monchique. Gritei e supliquei que fossem em auxílio da minha casa, que fica junto ao Convento, mas ninguém fez nada”, denuncia. Enquanto isso, a filha era “insultada” por um GNR à porta de casa. O militar insistia que tinha de sair dali porque, garantia, “não ia sobrar nada da vivenda assim que o lume por ali passasse”. Mas a casa, ao contrário de Karuna, salvou-se, mas como que por milagre, porque Ana entretanto pegou na filha e nas cadelas e fugiram para longe, rumo à costa. Nessa noite, dormiram numa praia. 

Uma semana e meia depois, já recuperaram do choque e deitaram mãos à obra. No fim de semana passado, com a ajuda de 40 voluntários, removeram os destroços do que sobrou de Karuna. Entretanto, já houve quem se tenha oferecido para doar materiais de construção para que as paredes possam voltar a erguer-se, mas as obras estão condicionadas pelas muitas pilhas de entulho para as quais ainda não há destino. “Pedimos ajuda à Câmara [de Monchique], um camião para carregarmos o lixo, mas ainda estamos a aguardar”, diz Ana. Mesmo assim, um novo grupo de voluntários deverá regressar hoje a Karuna para dar continuidade aos trabalhos. E se, em tempos, o Centro era uma casa de silêncio e, acima de tudo, de tempo, em que quem o visitava procurava olhar para dentro em busca de paz e de bem-estar, agora quem chega olha de dentro para fora, para recuperar o que se perdeu. 

O projeto foi pensado pelo marido de Ana Ferraz, Bal Krishna, que cresceu entre a Índia e Moçambique e que é praticante, há mais de 40 anos, de meditação vipassana e budismo tibetano. Juntos prometem agora reconstruir o sonho de Karuna, pedra a pedra. Porque as paredes podem ter até ardido, mas a essência do lugar mantém-se. E a prova é que, dois dias a seguir ao fogo, já havia água a brotar das fontes que existem em Karuna.