Monchique, terra queimada


Uma das funções primordiais do Estado é garantir a segurança dos cidadãos, a qual não abrange apenas a protecção das suas vidas, mas também a segurança dos seus bens


Tenho por hábito passar as minhas férias de Verão em Aljezur, a cerca de 30 km de Monchique. Conheço, por isso, muito bem essa linda terra, com uma serra magnífica, uma vila encantadora e uma enorme oferta de produtos regionais, que incluem o mel, os enchidos e os licores de medronho. É um enorme prazer ir almoçar à Fóia, que tem vários restaurantes no alto da serra, onde nos servem sempre excelentes refeições, ao mesmo tempo que desfrutamos de uma vista magnífica. Mas este ano tudo se perdeu e Monchique transformou-se numa terra queimada, precisamente por ter sofrido o maior incêndio da Europa num ano em que, na Europa, os incêndios não deram tréguas, como se viu pelo que se passou na Suécia e na Grécia.

Este ano, felizmente, não houve perdas de vidas humanas no incêndio de Monchique, o que, se representa um enorme progresso em relação aos incêndios do ano anterior, não é, no entanto, suficiente. Uma das funções primordiais do Estado é garantir a segurança dos cidadãos, a qual não abrange apenas a protecção das suas vidas, mas também a segurança dos seus bens. Ao contrário do que muita gente tem dito, não é verdade que baste salvar vidas, que tudo o resto pode ser reparado. Na construção das casas estão também em causa vidas que foram ali investidas, animais domésticos, objectos queridos, memórias, recordações, os quais, uma vez perdidos, nunca poderão ser recuperados. É, por isso, de uma enorme insensibilidade deixar arder as casas das pessoas sem nada fazer para as salvar, limitando-se a Protecção Civil a mandar retirar as populações. Os cidadãos pagam impostos ao Estado, designadamente o IMI e o AIMI, precisamente para que a sua propriedade seja protegida, sendo absolutamente inaceitável que o Estado, que é tão lesto a cobrar os impostos e que este ano até impôs aos proprietários uma obrigação de limpeza dos seus terrenos muito para além do limite das suas forças, seja depois tão ineficiente na protecção do seu património, que também lhe incumbe proteger.

Mas o que mais chocou nesta situação foi a insensibilidade do governo, que não só se mostrou incapaz de evitar a devastação causada pelo incêndio como fez inclusivamente declarações de um triunfalismo absurdo, a fazer lembrar Pangloss, a personagem de Voltaire que, perante as sucessivas tragédias, insistia sempre em que tudo ia bem no melhor dos mundos possíveis. Foi assim que António Costa, perante o maior incêndio da Europa, declarou que o combate aos incêndios estava a ser um sucesso e que Monchique era “a excepção que confirmava a regra”. Ao mesmo tempo fazia publicar no Twitter fotos onde se mostrava a combater o incêndio dentro de um gabinete, usando apenas um computador e um telemóvel. Eduardo Cabrita, quando o incêndio já tinha ultrapassado o concelho de Monchique e se estendia a Portimão e a Silves, repetia sucessivamente que o combate estava a ser “notável”. No fim, quando o fogo foi finalmente debelado, dizia que tinha sido “uma vitória” não ter havido vítimas mortais. 

Mas, em Monchique, os habitantes sabem bem que aquilo que sofreram não foi uma excepção nem uma vitória. Foi uma tragédia colossal que devastou a sua terra e tornou a sua vida extremamente complicada nos próximos tempos. E sabem bem que o Estado, que hoje foi incapaz de proteger as suas habitações, será o mesmo que lhes irá continuar a cobrar IMI pelas casas que perderam, como os partidos da geringonça insistiram em fazer relativamente às casas ardidas de Pedrógão. Por muitos incêndios que existam no país, o Estado continuará a ser sempre o “monstro frio” de que falava Nietzsche.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção 

das regras do acordo ortográfico de 1990
 


Monchique, terra queimada


Uma das funções primordiais do Estado é garantir a segurança dos cidadãos, a qual não abrange apenas a protecção das suas vidas, mas também a segurança dos seus bens


Tenho por hábito passar as minhas férias de Verão em Aljezur, a cerca de 30 km de Monchique. Conheço, por isso, muito bem essa linda terra, com uma serra magnífica, uma vila encantadora e uma enorme oferta de produtos regionais, que incluem o mel, os enchidos e os licores de medronho. É um enorme prazer ir almoçar à Fóia, que tem vários restaurantes no alto da serra, onde nos servem sempre excelentes refeições, ao mesmo tempo que desfrutamos de uma vista magnífica. Mas este ano tudo se perdeu e Monchique transformou-se numa terra queimada, precisamente por ter sofrido o maior incêndio da Europa num ano em que, na Europa, os incêndios não deram tréguas, como se viu pelo que se passou na Suécia e na Grécia.

Este ano, felizmente, não houve perdas de vidas humanas no incêndio de Monchique, o que, se representa um enorme progresso em relação aos incêndios do ano anterior, não é, no entanto, suficiente. Uma das funções primordiais do Estado é garantir a segurança dos cidadãos, a qual não abrange apenas a protecção das suas vidas, mas também a segurança dos seus bens. Ao contrário do que muita gente tem dito, não é verdade que baste salvar vidas, que tudo o resto pode ser reparado. Na construção das casas estão também em causa vidas que foram ali investidas, animais domésticos, objectos queridos, memórias, recordações, os quais, uma vez perdidos, nunca poderão ser recuperados. É, por isso, de uma enorme insensibilidade deixar arder as casas das pessoas sem nada fazer para as salvar, limitando-se a Protecção Civil a mandar retirar as populações. Os cidadãos pagam impostos ao Estado, designadamente o IMI e o AIMI, precisamente para que a sua propriedade seja protegida, sendo absolutamente inaceitável que o Estado, que é tão lesto a cobrar os impostos e que este ano até impôs aos proprietários uma obrigação de limpeza dos seus terrenos muito para além do limite das suas forças, seja depois tão ineficiente na protecção do seu património, que também lhe incumbe proteger.

Mas o que mais chocou nesta situação foi a insensibilidade do governo, que não só se mostrou incapaz de evitar a devastação causada pelo incêndio como fez inclusivamente declarações de um triunfalismo absurdo, a fazer lembrar Pangloss, a personagem de Voltaire que, perante as sucessivas tragédias, insistia sempre em que tudo ia bem no melhor dos mundos possíveis. Foi assim que António Costa, perante o maior incêndio da Europa, declarou que o combate aos incêndios estava a ser um sucesso e que Monchique era “a excepção que confirmava a regra”. Ao mesmo tempo fazia publicar no Twitter fotos onde se mostrava a combater o incêndio dentro de um gabinete, usando apenas um computador e um telemóvel. Eduardo Cabrita, quando o incêndio já tinha ultrapassado o concelho de Monchique e se estendia a Portimão e a Silves, repetia sucessivamente que o combate estava a ser “notável”. No fim, quando o fogo foi finalmente debelado, dizia que tinha sido “uma vitória” não ter havido vítimas mortais. 

Mas, em Monchique, os habitantes sabem bem que aquilo que sofreram não foi uma excepção nem uma vitória. Foi uma tragédia colossal que devastou a sua terra e tornou a sua vida extremamente complicada nos próximos tempos. E sabem bem que o Estado, que hoje foi incapaz de proteger as suas habitações, será o mesmo que lhes irá continuar a cobrar IMI pelas casas que perderam, como os partidos da geringonça insistiram em fazer relativamente às casas ardidas de Pedrógão. Por muitos incêndios que existam no país, o Estado continuará a ser sempre o “monstro frio” de que falava Nietzsche.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção 

das regras do acordo ortográfico de 1990