Em plena onda de calor, 40 graus na rua, não há arguido ou juiz que não se queixe da temperatura. No fim de contas, e independentemente de que lado do crime se esteja, nas necessidades básicas somos todos iguais. O que muda é até onde se pode ir. E Cosme, sentado no banco dos réus, não se atreve a abrir a boca para soltar um “ai-jasus”, ainda que transpire aflitivamente e por todos os poros. A juíza, essa, tem o privilégio de poder agitar no ar um marcador de livros, furiosa e ritmadamente, para tentar refrescar o rosto.
Além da sensação térmica, polícias, juízes e ladrões têm muito mais em comum. Partilham, por exemplo, a capacidade de sentir amor. Ou abandono. E Cosme estava esperançado de que essa universalidade pudesse dar uma ajuda à resolução do caso. Até se vestiu a rigor para se apresentar em tribunal: calça engomada, sapato de vela e camisa nova. Há já muitos dias que não se preocupava com a roupa, queria era esquecer a dor. Mas causar bom aspeto, pensou, poderia ajudar à causa. Isso e mostrar arrependimento. E arrependido estava. Genuinamente. No fundo, o que aconteceu foi só uma bebedeira triste, porque há momentos na vida de um homem em que é difícil manter a compostura ou raciocinar direito. Há quem faça o luto entregando-se demasiado ao trabalho. Há quem grite, chore, se descabele ou parta objetos. Há quem se dedique ao ioga e adira a seitas esquisitas, Outros preferem esperar, em modo vegetativo, que a tempestade passe e que um qualquer deus desça das nuvens e apague e repare o que se perdeu.
É do senso comum: recuperar de um desgosto de amor é um exercício limite. Por vezes, de urgência entre a vida e a morte. E não há ciência capaz de explicar, com exatidão, como se conserta um coração partido. No caso de Cosme, a solução mais evidente foi a vodca. E foi por causa delas – da vodca e dela – que se achou sozinho no carro, madrugada alta, a conduzir sem destino, completamente esquecido de que há sempre, invariavelmente, um destino. E o destino de Cosme foi a esquadra da PSP. E, a seguir, os calabouços. Logo depois, o tribunal. Pelo meio, ainda foi obrigado a soprar no balão pelos agentes da polícia – que suspeitaram que poderia estar a conduzir alcoolizado devido aos ziguezagues que o carro ia fazendo ao longo da estrada, felizmente deserta. Os diagnósticos do alcoolímetro, já se sabe, costumam ser muito piores do que os prognósticos. E Cosme, coração partido e alma perdida, acusou uma taxa de 1,59 g/l.
“Eu não queria ter bebido assim e quando peguei no carro até me estava a sentir muito capaz”, vai tentando explicar à juíza, num tom vagaroso e envergonhado. “Mas agora, realmente, reconheço que não estava em condições e sei que é muito perigoso. Como já disse, estou mesmo muito arrependido e não sei como é que me meti numa situação destas, nunca me tinha acontecido.”
A juíza, que continua a abanar-se furiosamente com o marcador de livros, escuta-o, visivelmente entediada e pouquíssimo recetiva a justificações. Vendo-a assim, o coração de Cosme volta a desfazer-se. Mas porque é que as mulheres são assim, sempre tão cruéis? Espezinham, xingam, abandonam sem pré-aviso. Humilham, seduzem e vão embora. Irritam-se sem razão e logo a seguir sorriem outra vez só para dar cabo dos nervos de um homem. Um minuto depois, Cosme recompõe-se e enche o peito de ar. Encara a juíza de frente. Olha–a nos olhos e implora piedade em silêncio. E ela olha-o de volta, sem ponta de emoção ou compadecimento. “A vida pode realmente ser muito difícil, mas o senhor também tem de saber que existem muitas outras maneiras de ultrapassar as adversidades. Meter-se num carro completamente alcoolizado, colocando em risco a vida de outras pessoas, nunca é solução. Só piora, aliás. Já viu no que se foi meter?”, pergunta ela. E Cosme acena-lhe com a cabeça que sim, que tem razão. Se ao menos pudesse culpabilizar-se pelo momento em que lhe passou pela cabeça a ideia estapafúrdia de guiar sem destino… mas nem isso. É que das memórias da madrugada anterior não sobrou rigorosamente nada. Já das memórias dela – ela, linda, sentada numa cadeira a ler; ela, maravilhosa, a rir–se das piadas dele; ela, doce, a fazer-lhe cócegas; ela, única, a dizer-lhe “amo-te” – sobrou tudo. A bebedeira apagou tudo. Só não serviu para a apagar a ela.