Com as raras excepções que só musculam a regra, a reunião de obras poéticas entre nós tem servido para arrumar com alguns chatos, garantir em definitivo que não mais serão lidos. É um selo no baú, e a esperança de que afunde depressa, indo adornar o leito do esquecimento. Aquele calhamaço onde tudo se recolhe, ao invés de uma tábua de salvação, é o revés da caneta personalizada que o Banco oferece aos funcionários quando chega a hora da aposentadoria. E, hoje, os poetas já nem se iludem tanto sobre a natureza deste acto jubilatório: espécie de ritual fúnebre que pretende semear num idioma o resultado de uma carreira de respeitáveis tentativas. Na maioria dos casos, no entanto, o melhor que se consegue é um enterro para a vaidade.
António Carlos Secchin tem um aforismo em que nos diz que: “No que toca à circulação da poesia, as noites de autógrafo se transformam em rituais simultâneos de batismo e óbito de um livro, que, fora dali, não será mais visto em lugar nenhum”. Com a exorbitância que as editoras portuguesas pedem por esses sarcófagos de papel, e sem alternativas em termos de edições antológicas mais em conta, mesmo o leitor que esteja na disposição de exumar todo o corpo de uma obra, ainda terá de sacrificar uma pequena fortuna.
Tudo isto seria evitável se, por um lado, as editoras não se virassem hoje para a poesia em busca de um falso prestígio, ostentando esses tijolos como barras de ouro, e se, por outro, os autores que publicam demais mostrassem, depois, alguma consideração pelos leitores, dispensando-os de levar com tudo o que das suas penas incontinentes foi pingando. Incapazes de se depenarem a si mesmos, passam por galinholas a ensaiar um elusivo golpe de asa. E esquecem como os maus poemas frustram aquela tensão essencial que se consegue quando o silêncio é ferido à queima-roupa.
Em pouco mais de 200 páginas, o poeta Antonio Carlos Secchin (n. 1952, Rio de Janeiro) reúne tudo o que se evadiu da prisão de máxima segurança do seu apurado sentido crítico. Se há um arco de quase meio século na sua obra poética, tudo lido, o que se sente é um embalo que deixa o tempo de fora, que não conta com ele para vir deitar a sua farinha e engrossar o caldo.
O signo sob o qual esta poesia se inscreve é o de um rigor funambulesco, uma extrema precisão: “Precisão incrível. Precisão de temas, precisão de formas. Tenho a impressão de que o poeta Secchin diz e faz, sempre, exactamente o que quer dizer e fazer. […] O rigor de métrica, de ritmo e de rimas dos seus sempre excelentes sonetos é do mesmo naipe dos recursos de construção de seus poemas – digamos – livres, onde, ainda que não ostensivos, ritmos e sonoridades se esgueiram, temperando a irregularidade métrica dos versos”, escreveu a crítica literária Marisa Lajolo numa publicação no Facebook.
Depois de uma breve antologia que o próprio poeta fizera da sua obra – “Todos os Ventos” (2002), e que contou com uma edição portuguesa com selo das Quasi, em 2005, um ano depois de a reunião da sua obra, “Desdizer”, ter saído no Brasil, os leitores portugueses que não andem perdidos nalguma das nossas selvas de papel, dedicados a inúteis arqueologias, podem regozijar-se com um dos mais exaltantes exemplos desse grau de contenção e síntese que encontra o poeta no seu vigor camaleónico: disfarçado num ângulo insuspeito da tradição, movendo-se a uma velocidade só dele (lentíssima), com os olhos trabalhando separadamente, controlando as cercanias. Ele espera o momento propício e, só então, lança a extensa língua que “é capaz de se mover 26 vezes por segundo o comprimento do seu corpo” (esta é para os entusiastas da vida selvagem).
Secchin mostra-se assim um formidável caçador das mais furtivas impressões. O próprio reconhece-se um “operário do precário”, ou seja: “um operário da linguagem, um experimentador de formas, cuja eficácia é posta à prova a cada verso ou estrofe que acaba de erguer”. E adianta ainda que “o alvo de sua palavra é instável e flutuante: abarca, a rigor, todos os meandros da experiência humana em suas calmarias e convulsões, em sua sede inesgotável do ínfimo e do absoluto, na inestancável demanda de novos sentidos”. E remata: “Eis a sina do escritor: acertar não no que vê, mas no que intui.”
Depois da reunião da obra poética de Eucanaã Ferraz – essa mais bojuda, mas não menos proveitosa –, e em simultâneo com a precoce reunião dos poemas de uma das autoras coqueluche da mais nova geração de poetas brasileiros, Alice Sant’ Anna, a INCM oferece-nos uma obra que, na sua aparente singeleza, se mostra uma fiável pedra-de-toque num terreno onde as artes de prestidigitação sofrem o cerco constante dos banais truques dos kits de iniciação.
Secchin pagou o mais alto preço pela sua intransigência enquanto criador, e o poeta que até se estreara primeiro caiu para uma linha de fundo, um remoto segundo lugar face ao seu trabalho desenvolvido enquanto crítico e ensaística. Foi, aliás, em honra a esse seu papel que João Cabral de Melo Neto disse: “Entre todos os professores, pesquisadores e críticos que já se debruçaram sobre minha obra, destaco Antonio Carlos Secchin. Foi quem melhor analisou os desdobramentos daquilo que pude realizar como poeta.”
Mas como dizia, o preço que pagou com a sua intransigência face às veleidades que vêm para o verso fazer gracinhas, chapinhar no charco que fita de baixo, e com um certo desdém, a “reflexividade e a gravitas que encontramos nos clássicos”, deixou-o muitas vezes refém daquela noite bem negra da dúvida, perguntando-se se a sua tão escassa obra poética teria a intensidade para se impor ao tempo, quando o pó assentasse e a perpétua cintilância que compusera naquela “linha de fundo” pudesse vingar: "Assim meio jogado pra escanteio,/ volto ao poema, este local do crime./ Mas é o desprezo que melhor exprime/ aquilo que no verso eu trapaceio./ Se pouco do que digo me redime,/ cópia pirata de um desejo alheio,/ revelo a ti, leitor, o que eu anseio:/ um abutre no cadáver do sublime./ A matéria é talvez muito indigesta,/ me obriga a convocar um mutirão/ para acabar com toda aquela festa/ de pétalas e plumas de plantão./ Memória derrubada pelo vento,/ quero aqui só lembrar o esquecimento.”
Se, no campo da crítica, Secchin foi “um contumaz estudioso de João Cabral”, ele faz questão de sublinhar que a sua poesia nunca quis ficar beijando os pés da dele: “Estudei os seus textos para aprender como ele faz, magistralmente, a literatura que eu não quero fazer.” E, em mais uma prova da sua perícia essencialista, adianta: “Um grande poeta não costuma deixar herdeiros, e sim imitadores. Abre mil portas, mas deixa todas trancadas quando vai embora…”
Isto lê-se num esplendoroso depoimento que encerra a reunião da sua obra, e nele, sem trair o tom de troça e auto-ironia em linha com o registo humorado e paródico da sua poesia, Secchin não só recusa qualquer influência que tenha feito dele um escravo da sua admiração – um “vento velho derrubado aos pés do mito” –, mas traça uma noção de arte poética com um alcance que, sem erguer a voz, nos acerta como um machado no ombro.
Há nas reflexões de Secchin sobre poesia uma clareza penetrante e que, sem qualquer margem para pedantismo, desmonta tanta da atrapalhação mistificadora e da opacidade de que os vates abusam, como perfume para disfarçar o suor, na hora de se fazerem desposar no altar da posteridade. Assim, depois de falar no seu “compromisso radical de criar uma palavra tanto quanto possível própria, mas abastecida pelo manancial que flui dos mais diversos mares discursivos”, e de nos lembrar aquele verso bem destilado onde anotara que a escrita “é uma escuta feita voz”, Secchin ainda trama os muitos e tão contentinhos auto-epígonos, sublinhando que, se face aos seus pares, o poeta tem o dever de ser ímpar, “conseguir demarcar diferença ainda não resolve o problema, pois existe o risco de o artista tornar-se o repetidor da própria voz, numa prática exaurida que transforma em clausura o que antes fora libertação”.
Numa obra onde não falta o desastre para alimentar novos ímpetos, o poeta surge-nos como um mestre de pequenas obras, um talentosíssimo trolha virando o real do avesso. Defende o vigor irredutível da poesia, a astúcia que planeia as mil fugas da mais inviolável das prisões: “Não sei o que o futuro guarda de armadilha,/ porém, não vou ficar parado e prisioneiro/ de quem, pajé pujante em sua antiga taba, /dali pretende governar o mundo inteiro.// Pra cima da poesia não vale esse veneno,/ que já destila seu sabor de cianureto./ Enquanto a tribo grita ‘Por aí não passa’,/ passa um poema concreto ao lado de um soneto.”
E, no fim, fica claro como a poesia ensina o homem a largar da mão dos finais, felizes ou não, e a entreter-se com os meios. Porque o real está sempre inacabado ou, como Secchin deixou claro na entrevista dada a Luís Caetano, quando veio a Portugal para o lançamento de “Desdizer”: “essa insuficiência do real é o grande alimento, o grande pão, do poeta. É a sua vontade de chegar ao impossível. O poeta sabe que não chega lá mas tem de se empenhar com todo o entusiasmo, com toda a sua força. Para que serve a Poesia (…) senão para essa busca interessante de alargar a visão do homem, de alargar o sentido das palavras para além de onde o bom senso quer que elas parem?”