Paula Franco assumiu este ano as funções de bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados, cargo que durante muitos anos foi exercido por Domingues de Azevedo, que faleceu em 2016. Um dos seus desafios é melhorar a qualidade de vida dos contabilistas e, para isso, apresentou ao governo várias propostas que espera ver consagradas no próximo Orçamento do Estado. Entretanto já pôs as contas da ordem em dia e uma das medidas que implementou foi o corte em 30% dos salários dos órgãos socais mas que, no seu caso, atingiu os 39%. Acabar com os lóbis foi outro dos seus objetivos num país em que admite que há uma cultura de incumprimento.
Assumiu funções como bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados há cinco meses. Que balanço faz?
Apesar de não estarmos em funções há muito tempo, já fizemos muito. Conseguimos criar uma estrutura para tudo aquilo que queremos desenvolver. Tínhamos um plano de ação muito ambicioso para cumprir até ao final do ano e vamos conseguir cumpri-lo.
Que plano é esse?
É um plano que tem como grande objetivo melhorar a qualidade de vida dos contabilistas. Estes foram apanhados por uma série de alterações fiscais e legislativas que contribuíram para que ficassem muito sobrecarregados em termos de trabalho. Além disso, o próprio trabalho dos contabilistas está muito aquém do reconhecimento que devia ter. E, normalmente, como têm muitos clientes, isso também significa que ficam muito sobrecarregados com a quantidade de obrigações a que têm de responder e que têm vindo a crescer e não a diminuir, como seria desejável. Fala-se muito em desmaterialização e simplificação mas, na nossa profissão, isso não se sente, antes pelo contrário. Aquilo a que temos vindo a assistir é a um agravamento das obrigações que retira muito a qualidade de vida aos contabilistas. Para mudar essa realidade temos apresentado várias propostas legislativas, temos vindo a de-senvolver vários trabalhos com a secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais e com a Autoridade Tributária para diminuir ou juntar algumas obrigações com vista a melhorar a vida dos contabilistas. Também queremos realizar um estudo para identificar o que são as tarefas dos contabilistas de forma a dar a conhecer aos empresários aquilo com que devem contar e o que não faz parte das suas funções.
Quais foram as propostas que apresentou ao governo?
Uma delas está relacionada com a implementação de normas legais que salvaguardem o justo impedimento, outra diz respeito às férias fiscais. Temos uma profissão que lida todos os dias com impostos e obrigações fiscais que são recorrentes, todos os meses lidamos com uma série de obrigações que temos de cumprir, mas se acontece alguma coisa, se ficamos doentes ou se há uma licença de maternidade, há que salvaguardar esse tipo de situações e dar continuidade ao trabalho que tem de ser desenvolvido. Daí a importância do justo impedimento, que é uma situação que não está atualmente salvaguardada na legislação. Temos de trazer para a legislação essa matéria porque é extremamente importante proteger os contabilistas, e também os contribuintes, face à possibilidade de existir incumprimento em determinadas situações, pois se não cumprirmos haverá consequências bastante graves para o cliente. Há também a questão das férias fiscais. Com a ViaCTT, as notificações têm um prazo de cinco dias e se o contabilista estiver de férias tem de estar com a mesma preocupação como se estivesse a trabalhar. Isto significa que não há nenhum período de descanso porque, se o contribuinte for notificado, é natural que recorra ao contabilista para resolver a questão. As férias fiscais são tão importantes como as férias judiciais que já existem. É uma profissão que tem obrigações muito complexas e a questão dos cinco dias das notificações faz com que os direitos dos contribuintes não estejam salvaguardados, e no período de férias menos ainda.
Qual foi a recetividade a essas propostas?
Espero que seja boa e espero vê-las aprovadas no próximo Orçamento do Estado.
Disse recentemente que os contabilistas têm de prestar um melhor serviço público, mas que o grande problema é que estão sobrecarregados e que era necessário avançar com tabelas indicativas…
O que acontece é que passámos por um período de crise que atravessou todas as áreas e fez com que as margens ficassem muito diminuídas. Agora é preciso recuperar um bocadinho, mas o contabilista ainda não conseguiu. A atividade é muito intensa, muito exigente. Os contabilistas têm de estar focados numa especialidade que abrange uma série de áreas e, como tal, têm de ser pagos em função disso.
Tem ideia de qual é o preço médio que atualmente é cobrado?
É muito variável. O que acontece é que os preços do interior são totalmente diferentes dos valores que são cobrados no litoral. O mesmo acontece entre as grandes e as pequenas cidades. O que sei, e que muitas vezes é divulgado pelas redes sociais, é que oferecem, às vezes, 50 euros, 100 euros pelos seus serviços. Isso não paga sequer a responsabilidade que o contabilista tem e, ao aceitar isso, está a perder dinheiro. O que é engraçado é que os contabilistas fazem estudos para as empresas para as ajudarem a saber onde é que perdem dinheiro, mas raramente fazem esse trabalho para si próprios, quando eles também são empresários. Há muitos contabilistas a perderem dinheiro pelas avenças que fazem.
E depois, para compensar, aceitam muitos clientes e ficam sobrecarregados…
Exatamente. Têm clientes a mais para a quantidade de obrigações que existe hoje em dia.
Quando falamos em contabilistas temos a ideia de profissionais já com alguma idade. Essa visão está correta?
É a visão correta porque é uma profissão pesada, com muita rotina, com muitas obrigações e muita responsabilidade. Por isso, há uma tendência maior para que as pessoas mais velhas assumam de forma mais natural essa mesma responsabilidade acrescida. Os jovens, hoje em dia, procuram fugir de grandes responsabilidades. O que temos feito na ordem para atrair jovens para a profissão é mudar um bocadinho isto, nomeadamente em tudo o que é rotineiro, transformando os sistemas informáticos em sistemas mais atrativos para que o contabilista faça apenas o seu papel, que é a gestão e o acompanhamento das empresas, e que não se dedique ao tratamento da informação. O que continua a existir hoje em dia é que damos muito mais importância à leitura da informação do que ao tratamento da informação, e os sistemas informáticos ainda não permitem essa desmaterialização em termos de registo contabilístico das operações.
O fim das declarações do IRS em papel não veio reduzir o recurso aos contabilistas?
Não, até aumentou. Tirando a declaração de IRS automática – porque é, de facto, muito simples para quem tem apenas rendimentos de trabalho dependente ou pensões -, tudo o resto exige muito trabalho. E os contribuintes não têm nem confiança nem conhecimento suficiente para cumprirem sozinhos as obrigações fiscais. Por muito que se simplifique o IRS, este continua a ter muitas especificidades. É muito raro os contribuintes conseguirem preencher a declaração sozinhos e normalmente recorrem a profissionais, mesmo em situações mais simples. Aliás, nos últimos anos, o que tenho notado é uma maior procura de contabilistas nessa altura do ano. Além disso, a falta de confiança no sistema também é muito grande porque não sabem se estão a preencher todas as informações e têm receio que possam vir a ser prejudicados e que venham a pagar mais.
Mas há quem continue a criticar o facto de transformar os contribuintes em inspetores do fisco, nomeadamente no caso da validação de faturas…
O caminho que o fisco fez foi esse, foi no sentido de haver uma série de informação dentro do sistema que depois é cruzada. Em termos teóricos, a ideia é boa, pois temos a noção de que está tudo no sistema e, como contribuinte, consigo consultar e saber todas as despesas que tenho. Na prática, as pessoas não têm tempo para se dedicar a essa tarefa e, muitas vezes, nem sabem onde é que vão procurar essas informações. Nem todos os portugueses têm capacidade ou conhecimentos informáticos para o fazer. Temos um país em que nem todos têm acesso à internet e temos uma população idosa que tem as mesmas obrigações, mas tem dificuldade em ter esse acesso. O facto de se dizer que com este Simplex está tudo mais simplificado, não é bem assim, acho que tudo tem o seu tempo e, se calhar, daqui a uns anos, assim será. Até lá, o contribuinte não consegue gerir isto tudo da melhor forma.
Terminar com as declarações de IRS foi uma boa solução?
É o futuro de qualquer país. Mas, se calhar, em Portugal quis-se caminhar um bocadinho depressa demais e não se teve em conta este grande número de pessoas idosas e de população com alguma dificuldade em desenvolver essa função. Ainda assim, foram disponibilizados meios nas juntas de freguesia, nos serviços das Finanças e muitos profissionais assumiram esse papel. Não há dúvida que o Estado está a delegar um bocadinho esse papel nas pessoas e no tratamento de toda a informação.
Foi o que aconteceu com a polémica em torno da ViaCTT. Como viu essa situação?
Com alguma preocupação. Essa obrigação era dos contribuintes, e não do contabilista. O contabilista não cumpre essa obrigação nem tem de cumprir. Estamos a falar aqui de um país real a quem é exigidos aos empresários um conjunto de obrigações, mas estes não estão preparados para fazer nem têm conhecimento para isso. Os empresários portugueses acham que só têm de se dedicar ao seu negócio, mas o certo é que têm um conjunto de obrigações de que se esquecem e, depois, acham que essa responsabilidade é do contabilista, quando não o é. A ViaCTT é a caixa de correio do contribuinte – seria o equivalente a dar a chave do correio ao contabilista, não faz sentido. O contribuinte tem a obrigação de rececionar as coisas e só depois é que passa essa informação ao contabilista, em função do que recebe. Até porque seria perigoso fazer o contrário. O problema é que o Estado quer atribuir funções que muitas delas são efetuadas pelos contabilistas, mas quando isso não acontece, na maior parte dos casos, não há cumprimento.
E tudo isto não torna a relação com a Autoridade Tributária mais complicada?
Torna porque há a tal questão de insegurança que existe. Mas a Autoridade Tributária já disse que vai arranjar uma solução para o próximo ano, isto porque esta ViaCTT obriga a uma inscrição prévia, a um registo, e as pessoas têm de saber que têm de o fazer. O contabilista até pode alertar, mas não tem obrigação de o fazer. Mas certo é que, se alguém abre uma empresa, devia ser avisado pelo próprio sistema que tem de fazer esse registo, mas isso não acontece. E depois há uma outra questão: o contribuinte tem de estar constantemente a consultar a ViaCTT para saber se tem notificações porque, do ponto de vista do procedimento tributário, os contribuintes consideram-se notificados cinco dias após a receção – o prazo anterior era de 20 dias, mas foi reduzido -, o que é um prazo curtíssimo. E quer abra quer não abra aquele contacto por ViaCTT, o sistema considera-o notificado. Veja o risco que há aqui na defesa e na garantia dos contribuintes. Ou há aqui um interlocutor que é o contabilista, que salvaguarda essas situações, ou não sabe o que se passa.
Faz sentido existir esta ViaCTT quando estamos a falar de uma empresa privada?
Considero que todas as notificações que a Autoridade Tributária quer fazer devem ser feitas numa área reservada entre o fisco e os contribuintes. Claro que, quando se implementou, quis-se fazer uma coisa mais geral, não só para a Autoridade Tributária, mas também para outros serviços. Mas penso que existe aqui algum risco de circularização de dados. E com todas estas novas regras de proteção de dados é um pouco complicado este sistema estar na esfera privada.
Na campanha eleitoral falou na necessidade de lutar contra lóbis. Já há resultados?
Há sempre caminho a fazer. Tenho-me pautado pela independência, não estou ligada a qualquer partido político. Tanto lido com o parlamento como lido com o governo e queremos atingir os nossos objetivos sem nunca ceder a interesses. É por isso que nos temos pautado e muito do que conseguimos nestes cinco meses está relacionado com esta grande diferença. Não cedemos nem vamos ceder a nenhum lóbi.
Uma das primeiras medidas que implementou foi o corte dos salários em 30% a todos os órgãos sociais…
Era uma promessa eleitoral, já estava prevista. A situação económica da ordem não era, em termos de tesouraria, a melhor. Tivemos de reduzir muitas situações e, após cinco meses, já temos uma tesouraria saudável. Mas foi de facto necessário gerir ao pormenor cada tostão que se gasta e uma das reduções que se fizeram foi ao nível das remunerações dos órgãos sociais. Por exemplo, no caso da bastonária houve uma redução de 39%.
E os órgãos sociais reagiram bem?
Não é fácil. Mas todos temos de ter a noção que isto é uma gestão de uma entidade que é paga com as quotas dos membros, muitas vezes com grandes dificuldades. A estrutura da ordem é equivalente a uma grande empresa, temos 150 trabalhadores. A gestão, aqui, já é uma gestão equivalente a uma empresa de grande dimensão e, como tal, tem as suas remunerações. No entanto, é preciso cuidado porque não deixa de ser uma entidade do setor não lucrativo, em que os membros pagam as suas quotas e é com dinheiro deles que são pagas as remunerações. Por isso, tudo isto tem de ser um bocado regrado.
Mas a ordem esteve recentemente envolvida em torno de Rui Rio, que recebia 21 mil euros anuais, e do eurodeputado Manuel dos Santos, que ganhava 28 mil euros por ano…
Sim, mas já não está cá nem um nem outro. Houve um corte muito grande desta direção com o poder político porque entendemos que temos de estar bem com todos sem ter relações privilegiadas com ninguém. As intervenções políticas e termos determinados “anticorpos” levam a que não sejamos tão livres naquilo que queremos fazer.
Disse há pouco que teve várias reuniões com a Autoridade Tributária e com o governo. Como têm sido esses encontros?
Têm sido muito regulares, quase semanais, quer com a Autoridade Tributária quer com os secretários de Estado. Têm sido muito intensas, mas também com muita firmeza. Não sou uma pessoa fácil de ceder a muitas situações. O meu objetivo é levar aquilo que pretendo da profissão para a frente. Se não vou por uns caminhos, vou por outros, mas vou conseguir concretizar aquilo que temos em mente.
Com qual deles é mais fácil negociar?
Temos tido uma excelente relação com os dois. Têm estado muito abertos em relação ao que propomos, mas ainda se nota algum conservadorismo. Tem-se conseguido muita coisa, mas é preciso conseguir muito mais.
O anterior bastonário era um dos principais críticos do sorteio do fisco. Partilha a mesma visão?
Não sou tão radical. Houve aqui uma grande política de marketing para incentivar as pessoas a pedirem faturas com o seu número de contribuinte porque somos um país do sul da Europa. Culturalmente somos pessoas incumpridoras e achamos que se podermos pagar menos impostos, melhor. Tinha de haver uma grande política de marketing para levar as pessoas a pedirem faturas com o seu número de contribuinte e foi essa a escolha. Primeiro com o sorteio do carro, depois com os certificados de aforro, mas sempre para incentivar as pessoas a mudarem a sua cultura e a sua forma de estar. Costumo dizer que o mais difícil é conseguirmos mudar mentalidades, e é uma das coisas que queremos fazer aqui na Ordem. É preciso mudar a mentalidade em torno das avenças, da qualidade de vida, e isso é o mais difícil. Hoje em dia, concordando ou não, estamos todos mais despertos para pedir faturas com número de contribuinte quando, há uns anos, ninguém o fazia.
Conseguiu combater a fraude e a evasão fiscal, que eram os grandes objetivos?
Atualmente, os empresários têm noção de que em Portugal já não é fácil fugir aos impostos. É um país onde com a intervenção dos contabilistas – que acabam por ser uma peça fundamental nos processos – e com os meios de cruzamento de informação, não é fácil manter uma economia paralela. Há um controlo muito rápido e é tudo tratado de forma tão célere que as pessoas nem sequer têm tempo de estar em situações de incumprimento.
As principais deduções para quem pede fatura com número de contribuinte são em setores que tradicionalmente fugiam ao fisco…
Exato, foi mais direcionado para os setores incumpridores.
O governo já está a preparar o próximo Orçamento do Estado. De que está à espera em termos fiscais?
Espero que seja um ano de estabilidade, aquilo que a ordem tem pedido é que exista um Orçamento do Estado sem alterações fiscais. É fundamental que haja algum conservadorismo e uma segurança fiscal para que não se esteja a lidar sempre com alterações. Devia haver um compromisso para que durante cinco anos não houvesse alterações. O que espero deste Orçamento é que tenha poucas alterações porque isso implica com a vida das empresas, com a vida dos contabilistas e com os conhecimentos que todos temos de ter. As mudanças constantes causam muita instabilidade nas empresas. O investimento em Portugal, um dos problemas que tem, além de outros como a justiça, é esta mudança constante ao nível da fiscalidade que acaba por causar muita insegurança aos investidores. Porque quando invisto estou a contar com uma determinada legislação fiscal e o meu investimento é feito à medida dessa moldura, mas, de um ano para o outro, tudo muda. E isso tem acontecido em Portugal com muita regularidade.
Mas mudar os impostos é sempre uma ideia tentadora para os governos…
Todos gostam de deixar a sua marca. Mas, hoje em dia, os governos já perceberam que o mais importante é mexer cada vez menos.
Por último, sucedeu a Domingues de Azevedo, uma figura muito carismática. Como está a correr?
É um grande desafio, ele foi um grande líder. Deixou um grande património, uma estrutura montada, embora a forma de estar seja agora completamente diferente. Somos de gerações diferentes e o caminho que queremos seguir não é igual ao que foi seguido, mas foi feito numa altura certa, em termos de dignificação e de valorização, e agora temos de partir mais para a base profissional e trabalhar os profissionais para eles terem a tal qualidade de vida e dignificação que falta ao contabilista em si.