Caro Diamantino. Permite-me que me dirija a ti tratando-te por tu. A verdade é que, devo confessar-te, senti sempre esta espécie de empatia com os pequenos delitos – minha culpa, minha tão grande culpa. Ciente disso, nunca poderia ter sido do direito e muito menos juíza. Na hora de ditar uma qualquer sentença, em vez de consultar o Código Penal acabaria por me socorrer de livros com histórias de unicórnios, compêndios ilustrados das fábulas de La Fontaine ou manuais, dos baratos, de psicologia.
De maneira que fiquei comovida com o teu ar desfeito quando chegaste à porta da sala de audiências, meio esbaforido e com um rolo caótico de papéis desarrumados e muito enrugados na mão. Ficaste em pé, completamente perdido e sem jeito, a olhar para a juíza, para o procurador do Ministério Público e para o teu advogado oficioso – que, provavelmente, nunca tinhas visto antes -, enquanto o teu destino era decidido. Sem perceberes patavina do que estava a acontecer e sem saberes se poderias interromper a lengalenga. Ficaste genuinamente atrapalhado. E se, numa qualquer outra situação, te teria olhado com desdém e alguma reprovação, desta vez fiquei desarmada. Talvez me tenha comovido o teu deslocamento.
Mas, caramba, Diamantino… quem é que chega atrasado ao próprio julgamento? E atrasado ao ponto de a juíza ter conseguido ler, detalhadamente, o crime de que estavas acusado? Ao ponto de o teu advogado de defesa ter tido tempo para te defender, ainda que não tenhas colaborado com ele? Ao ponto de o magistrado do Ministério Público ter dito de sua justiça, num discurso algo longo e bastante vagaroso? Ao ponto de a juíza ter pensado no assunto, te ter condenado e ter começado a ler a tua sentença? Ouve o que te digo: chegaste tão atrasado que teria dado tempo para folhear um volume inteiro da Enciclopédia Luso-Brasileira.
Fizeste asneira da grossa. E é evidente que a juíza não te deixou entrar na sala de audiências nem parou a leitura da tua sentença. Se ao menos tivesses conseguido chegar dez minutos antes, ainda te poderiam ter deixado falar.
Mas também… o que terias para dizer? Como pensavas explicar o facto de teres sido apanhado em plena estação do metro, na Pontinha, com um taser dentro da mochila? Para que raio querias tu um taser? Bem sei que disseste ao polícia que não era teu, que era de um amigo. Mas quanto a este ponto, Diamantino, nem no meu Código Penal de unicórnios te safavas. Há coisas que não se fazem nem por amizade e transportar armas de outras pessoas é uma delas. Esta foi só a tua primeira asneira.
Se sabias que trazias um taser na mochila, porque decidiste não pagar o bilhete do metro e preferiste entrar à socapa? É que, bem vistas as coisas, foi essa a asneira que verdadeiramente te tramou. Eram 15h50, não era hora de ponta, havia pouca gente, e os agentes da PSP que estavam a fazer a segurança deram por ti imediatamente e logo no momento em que fazias uma espécie de parkour e malabarismos vários para conseguires saltar os pórticos até aos cais de embarque. Naturalmente que vieram falar contigo, não é? Até sinto vergonha alheia.
Entendo que tenhas ficado à rasca e que, quando viste o metro a chegar, pensaste que conseguirias fazer uma daquelas coisas que se veem habitualmente nos filmes americanos. Entrar na carruagem um segundo antes de o comboio partir e deixar para trás os agentes da polícia, pasmados e apeados, a verem afastares–te e desaparecer na escuridão do túnel do metro, contigo a suspirar de alívio dentro da carruagem – ai meu Deus, ai meu Deus. Mas a vida, Diamantino, tem muito pouco de ficção e é claro que foste apanhado e acusado de posse de arma proibida.
No fim de todas as contas, e se o cinema é coisa de fantasia, também os meus livros das leis dos unicórnios têm pouco a ver com a vida real. Por isso – e vou ser sincera -, até eu te teria condenado ao abrigo do artigo da tua idiotice, alínea da estupidez. Perdoa-me a frieza das palavras. Pensando bem, talvez até tenha sido melhor teres chegado atrasado ao teu julgamento e não te teres podido defender frente à juíza. Desastrado como és, ias acabar por contar uma qualquer história sem pés nem cabeça. E, se o tivesses feito, estaria agora a escrever sobre ti, nesta crónica, usando um tom tristemente jocoso.
Como chegaste tarde demais, não tenho grande alternativas. Resta-me acreditar que sou capaz de entrar na tua cabeça e inventar pelo menos 132 explicações lógicas e altamente razoáveis para o sarilho em que te meteste. Também posso ficar a ver-te ir embora montado num unicórnio gigante, rumo a um céu imensamente azul, daqueles que têm nuvens claras, fofas e em forma de castelos encantados. Deixo-te ir, mas não te esqueças de pagar os 650 euros de multa a que foste condenado. Se não pagares, é mais uma asneira, Diamantino.