“Isso tudo é apenas um truque meu para manter a família por perto. Você sabe, os filhos crescem e vão ficando mais distantes…”, respondia com humor Caetano Veloso à pergunta do jornalista da “Folha de S. Paulo”.
Já sabemos o porquê. E como? “Um germe de ideia”, recordava ao jornal, nasceu no espetáculo integrado no ciclo Pais e Filhos, apenas com Moreno Veloso, o mais emancipado dos três descendentes. “Fiquei a sonhar com isso por muito tempo, pelo menos três anos, mas o Zeca não queria. Então tive de esperar por ele”, contou. A fase seguinte foi escolher repertório. E aí a família descobriu que não precisava de bater a outras portas. Os quatro eram autossuficientes para revisitar a extensa obra do pai e picar canções dos filhos.
Zeca, o renitente, estudou durante três meses. Habituado a compor ao piano ou violão, é contrabaixista no espetáculo estreado no Rio de Janeiro em outubro do ano passado e que agora visita o Coliseu dos Recreios – uma sala por demais conhecida por Caetano Veloso, desta vez à mercê de um concerto inédito aos olhos do público português.
À Folha de São Paulo, Zeca Veloso explicou o porquê das dúvidas com o desconforto provocado pela exposição mediática e a inclusão de canções suas na reunião de família. “Aconteceu tudo muito depressa. Há ano e pouco, não imaginava estar envolvido num projeto desta dimensão, com composições minhas. Assusta”, confessou.
Zeca nunca tinha tido compromissos com a indústria musical, enquanto Moreno e Tom têm vasta experiência no meio – Moreno como produtor, autor de álbuns como “Moreno + 2”, membro da Orquestra Imperial e músico da banda…do pai, e Tom, o filho mais novo, como guitarrista dos Dônica. Agora, é ele o primeiro a reconhecer que a família de sangue é uma família musical. “Tornámo-nos uma pequena banda. Nunca me considerei um músico profissional, mas agora, além do violão, consigo tocar contrabaixo e piano”.
Segundo os relatos, os ensaios foram bem dispostos. Djavan foi inspiração assumida enquanto “Ofertório” ganhava forma mas do rádio e serviços de streaming saía música pop. “Gosto muito de sertanejo, funk e outros estilos populares. Ouço muito R&B, é uma música que tem muita vitalidade”, explicava. Filho de camaleão sabe deixar cair a pele.
Assim se explica o ritmo do inédito “Alexandrino”, inspirada pelo interesse de Zeca Moreno pelo funk brasileiro. “Nessa linha dançante, eu prefiro o que é feito aqui. Para mim, Anitta e Ludmila são muito mais inspiradoras do que, vamos dizer, a Rihanna”, assume o patriarca com a cabeça bem aberta.
“Gosto muito de ouvir pop. Coisas que tocam na rádio, tipo funk. São géneros que se estão sempre a reinventar, enquanto outras áreas mais respeitadas da música têm uma postura muito conservadora”, completa Zeca Veloso, talvez inspirado pelo exemplo do pai que nunca deixou de se reinventar, questionar ou desafiar para cumplicidades. Um dia, teria de ser com os filhos.
O alinhamento repesca clássicos como “O Leãozinho” e “Alegria Alegria”; e segredos mal guardados como “Trem das Cores”, escrita em homenagem à ex-namorada e musa Sónia Braga, mas o miolo é composto por canções novas, como “Todo Homem’ (de Zeca Veloso), “Ninguém Viu” e “Clarão”.
Um “repertório emocional”, chama-lhe Caetano. “Tocamos apenas o que é nosso. Ao longo das temporadas, também fizemos algumas mudanças para ver o que funcionava melhor. Mas todo o mundo, principalmente o Moreno e o Tom, estavam bem confiantes”, comentou Caetano Veloso à Rolling Stone. “Não sabíamos se o público iria gostar de um espetáculo com tantas canções inéditas e pouco conhecidas”, disse, mas a reação foi boa. O “Ofertório” perdeu o exclusivo familiar e é de quem o apanhar.
O álbum ao vivo revisita o concerto gravado no Theatro Net São Paulo. A síntese de inúmeras influências acumuladas por Caetano em mais de 50 anos de memória refrescadas pelas ideias Zeca, Moreno e Tom Veloso. Acústico, sambista e aberto a raízes baianas.
Os voyeuristas podem estar seguros das conclusões. O tom sereno e o modo bem humorado não são uma cuidada encenação. É um espelho do ambiente vivido no clã Veloso.
“Nunca brigamos”, contava Caetano à “Rolling Stone”. “Eles é que me põe na linha. Eu aprendo mais com os três do que ensino. Somos uma família original, mas também bem feliz”. Nos Coliseus, podemos partir daqui. “Eu sou o único que só toca violão. Os outros podem-se revezar em alguns instrumentos. É um espetáculo familiar, nascido da minha vontade de ser feliz”. E já não é nada pouco.
O preço dos bilhetes varia entre os 20 e os 90 euros. E depois, é natural que Caetano Veloso volte a Portugal depressa e bem mas este “Ofertório” é um tipo de generosidade da que vem apresentando sozinho ou bem acompanhado.