O jornalismo de abutres que por cá se pratica tem um propósito claro: erradicar a esquerda do poder, custe o que custar e por mais moderada que ela seja. Diria que fez escola – e que escola! – o exemplo do admirável chefe de Estado que temos, Marcelo Rebelo de Sousa, ex-comentador da TVI e ex-presidente do PPD-PSD, ao insinuar e/ou sugerir que o grande responsável pelas consequências dos trágicos incêndios de 2017, em Portugal, é o governo chefiado por António Costa, sustentado na Assembleia da República por uma maioria de esquerda.
É verdade que Marcelo PR começou por admitir que “foi feito tudo o que podia ser feito” para combater o terrível incêndio de Pedrógão. Mas a memória do que disse passou a ser de galinha ao lobrigar que a tragédia era bom pretexto para abalar a popularidade do governo e dos partidos de esquerda que o sustentam. A direita enfraquecida e dividida e, sobretudo, os canais de televisão e os jornais nas mãos dos plutocratas atiraram-se ao osso que Marcelo PR lhes deu para roer com esfusiante entusiasmo e grande chinfrim. Mas o governo não caiu…
Os mistérios da natureza pregam várias partidas, mas também proporcionam algumas compensações e sucedâneos. O clima deste Verão português de 2018 não tem sido propício a novos e trágicos incêndios crematórios de vidas lusitanas, trocando as voltas aos atiça-fogos do jornalismo político, que se empenharam tanto em profetizar novas tragédias que viriam mesmo a calhar como pretextos para o PR derrubar o governo. Por isso, televisões e jornais “de reverência” não tardaram em atirar-se aos trágicos incêndios na Grécia, também governada pela esquerda, e toca a malhar no governo de Alexis Tsipras. Ai os fogos não são cá? Mas podiam ser! E foi até este ponto que já chegou a ignomínia…
Um lamentável bonifrate transfigurado em deputado – cuja glote, por não ser melíflua, não filtra o que ele bolsa pela bocarra – ousou escrever isto: “Em 2011, imitámos a bancarrota grega de 2010. Agora são os gregos que nos seguem na tragédia assassina dos incêndios descontrolados – muitas dezenas de mortos, autoridades a agirem sem tom nem som, populações abandonadas, enfim…” O bonifrate tem nome: chama-se Carlos Abreu Amorim. E tem partido: o PPD-PSD. A sua alma é mais negra do que uma noite sem lua. A sua arenga é bestialmente repulsiva, como um gorgolejo na sentina ao puxar do autoclismo.
É certo que os abutres não dormem. Estamos perante um ódio político ilimitado e antidemocrático, partilhado por abutres do jornalismo “de reverência”, apostados em conspurcar televisões e jornais com tudo o que for necessário para desancar a esquerda e desalojá-la do poder, inclusive identificando-a com o Estado tão odiado pelos neoliberais! Vale a pena ler, por exemplo, o apelo que o diário online de extrema--direita “Observador” está a fazer aos seus leitores: “Conhece algum caso em que o Estado está a falhar? O seu hospital não funciona? Chove na escola onde o seu filho anda? A esquadra tem más condições? Preencha o formulário para os jornalistas do Observador investigarem.” Já o apelo que o “Observador” não tenciona fazer seria assim: “Conhece algum caso em que o sector privado está a falhar? O seu hospital privado funciona mal? Chove no colégio particular que o seu filho frequenta? Os seguranças privados continuam a distribuir cargas de porrada? Preencha o formulário para os jornalistas do ‘Observador’ investigarem.”
É muito singular, todavia, o desinteresse que tal gente manifesta em relação às sucessivas tragédias ocorridas no Japão – cheias devastadoras e um calor brutal – que já provocaram muito mais vítimas do que os incêndios na Grécia. Mas não há nenhum mistério nesta diferença de tratamento. É que na Grécia é um governo de esquerda que está no poder, ao passo que no Japão é um governo de direita. Ora, segundo o catecismo dos políticos e jornalistas reaccionários, nunca um governo de direita poderá ser apontado como responsável por catástrofes naturais que causam dezenas, centenas ou mesmo milhares de vítimas. Isso só pode suceder quando é a esquerda que está a governar e é preciso desalojá-la do poder. Uma coisa é a “força dos elementos da natureza”, que um governo de direita não pode, naturalmente, contrariar. Outra coisa são os elementos da esquerda que, quando estão no poder, desencadeiam à força os elementos da natureza. Complicado? De modo algum! Meta-se na pele dum idiota de direita e começa logo a rosnar cheio de ódio e olhares fulminantes capazes de “incinerar” esquerdistas…
Para os abutres e atiça-fogos da política e do jornalismo lusitano “de reverência”, o futuro apresenta-se, todavia, risonho. De acordo com previsões meteorológicas, está para breve a subida em flecha das temperaturas, a rondar os 40 graus, por via da massa de ar quente e seco oriunda do interior de Castela, que assim dará crédito ao ditado popular segundo o qual “de Espanha, nem bom vento nem bom casamento”. Ora, como é certo que, coincidentemente com tão “oportuna” massa de ar castelhana, há-de verificar-se grande aumento do risco de incêndios, é claro que o governo está tramado e a direita ainda vai ter fogos de arromba!
Escreve sem adopção das regras
do acordo ortográfico de 1990