Suíça, offshores … E nós pagamos


“Os paraísos fiscais actuam em todos os lugares, logo, no seu país, na sua cidade. Enfraquecem os governos eleitos, minam a base tributária dos Estados e corrompem a vida política. Apoiam uma vasta economia criminal e permitiram o surgimento de uma nova aristocracia das finanças e dos negócios que não prestam contas a ninguém” (Shaxson)


Os jornais Expresso e Público divulgaram no início deste mês de Julho, depois de terem acesso ao relatório de combate à fraude e evasão fiscais, que dos 900 milhões de euros apanhados no escândalo suíço (SwissLeaks), com ligações a Portugal, só foram recuperados (?) 272 mil euros, isto é, 0,03%. Esta é a notícia mais recente de uma situação há muito revelada.

Esta constatação merece algumas considerações.

Um velho caso …

Este escândalo veio a público na imprensa portuguesa no início de 2015, por revelações de documentos disponibilizados pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ), tendo como centro das informações o banco inglês HSBC na Suíça. Contudo os dados são de anos anteriores e resultam da apropriação indevida por Harvé Falciani, que tencionava vender essas informações a outro banco. Contudo acontecimentos diversos fizeram com que viessem a ser (sem qualquer divulgação pública) apropriados pelo Governo francês, que em 2009 os entregou a outros governos e disponibilizou-se para o fazer aos que o solicitassem.

Noticiavam então os jornais portugueses:

“Portugal aparece no 45º lugar da lista com 855,8 milhões de euros depositados no HSBC da Suíça [correspondente ao salário mínimo anual de 125 mil trabalhadores, comparamos nós], espalhados por 778 contas bancárias pertencentes a 611 clientes. Destes, apenas 36% terão passaporte português e haverá um titular, cuja identidade não se conhece, que será dono de 143 milhões de euros”

Ao longo dos anos apareceram outras informações interessantes: em Março de 2015 revelou-se que um inspector das Finanças tinha conta milionária no HSBC e, um ano depois,informou-se que esse inspector está a auditar as Parcerias Público-Privadas.

… «ignorado»

Quando o escândalo foi tema em Portugal todos os responsáveis políticos e supervisores, de então e de antes, manifestaram total desconhecimento da lista disponibilizada pelo governo francês, o que revela ou mentira e hipocrisia, ou ignorância e distracção profundamente perniciosa ao bem-estar dos demais cidadãos ou, ainda, conivência.

Rede internacional de offshores

Os dados revelados sobre o HSBC mostravam, por um lado, a complexidade clandestina da rede de offshores e seus múltiplos tentáculos e coadjuvantes, e, por outro, a posição central da Suíça nessa rede.

É essa rede que permite grande secretismo nas fugas aos impostos e no branqueamento de capitais, constituição de múltiplas empresas para intermediar uma operação, proprietários fictícios (testas de ferro) que por vezes até desconhecem esse seu papel, câmaras de compensação de pagamentos internacionais anónimos, dispersão das fortunas quando sobre elas recai uma investigação, gestores de fortunas de angariação de verbas, advogados relatores de contratos «para cumprir» e até alguns pistoleiros para situações de emergência.

Segundo a Rede de Justiça Fiscal (TJN) tendo em conta o grau de secretismo e os montantes envolvidos, a Suíça ocupa o 1º lugar na rede de offshores mundiais. Se é certo que os EUA (proprietários também de offshores) conseguiram exigir algumas informações sobre os seus cidadãos, tal não invalidou o seu estatuto de «campeão».

«Impoluta» Suíça

Apesar de toda esta situação a legislação portuguesa continua a não considerar a Suíça como um offshore, como se revela pela Portaria 345-A/2016 com as suas actualizações mais recentes.

Limitada troca de informações

Abundam os acordos para troca de informações entre os offshores e os mais diversos países. Contudo funcionam muito parcamente por diversas razões.

Em primeiro lugar porque alguns organismos internacionaispromotores de tal estão minados por conflitos de interesse, consideram que a concorrência fiscal entre países é vantajosa e que apenas há que limitar os seus excessos. Em segundo lugar porque uma informação fidedigna é incompatível com um desacompanhamento dos processos, uma desburocratização total, uma actuação mais ligadas à movimentação de valores financeiros que à actividade produtiva, um secretismo típico desses territórios e instituições. Em terceiro lugar porque a «verdade» revelada por cada offshore é uma ínfima parte da realidade, o que facilmente se deduz do que afirmámos anteriormente sobre o que significa a sua rede. Em quarto lugar porque o pedido de informações traduz-se frequentemente na transmissão ao visado de que está a ser investigado, accionando-se os mecanismos de movimentação de fundos e sua defesa.

Os acordos de troca de informações podem significar para um offshore a melhoria do seu próprio estatuto, pela forma como são olhados e controlados, acabando por representar melhores oportunidades de negócio.

Crimes descriminalizados

Os perdões fiscais são uma descriminalização da fraude fiscal qualificada e, frequentemente, de branqueamento de capitais e outros crimes. O Ministério Público revela-se por vezes disponível para arquivar os processos em investigação quando os visados se disponibilizam a participar num processo de perdão fiscal. Parece até haver uma combinação cronológica entre os crimes em investigação, que o deixam de ser, e a oficialização de processos de perdão fiscal1.

Além disso as baixas taxas pagas são atractivas para que hoje se cometa fraude fiscal para se ter um perdão amanhã: “esperar por uma oportunidade para regularizarmos os impostos [muito provavelmente uma parte] com melhores condições fiscais.”2

Aliás isso corresponde ao que qualquer actual estudante de Economia aprende ‒ quando a força social se sobrepõe à epistemológica, moldando as suas concepções de vida, assente no estrito individualismo, dito racional, ignorando o bem colectivo.

Estas situações explicitam em que medida o político tem perdido autonomia e capacidade de decisão em relação às instituições privadas, tendência das últimas décadas, agravada pelas dívidas soberanas e pelas políticas discriminatórias da União Europeia.

Logo

Tendo em conta as considerações atrás produzidaso resultado final, os miseráveis 0,03%, não espantam. São acontecimentos como este que justificam que a economia não registadarepresente27% do produto oficial.

Os poderosos prevaricadores fogem aos impostos e todos nós vivemos com piores serviços públicos, menor desenvolvimento e mais impostos a pagar. Os offshores estão sempre presentes no nosso quotidiano, sem que a maioria das vezes estejamos suficientes conscientes dessa realidade.

NOTAS

1. Há vários exemplos desta situação em Apanhados de António Vilela, ed. Manuscrito

2. Afirmado numa comissão de Inquérito Parlamentar, citado por Mariana Mortágua no prefácio de Os offshores do nosso quotidiano, ed. Almedina


Suíça, offshores … E nós pagamos


“Os paraísos fiscais actuam em todos os lugares, logo, no seu país, na sua cidade. Enfraquecem os governos eleitos, minam a base tributária dos Estados e corrompem a vida política. Apoiam uma vasta economia criminal e permitiram o surgimento de uma nova aristocracia das finanças e dos negócios que não prestam contas a ninguém” (Shaxson)


Os jornais Expresso e Público divulgaram no início deste mês de Julho, depois de terem acesso ao relatório de combate à fraude e evasão fiscais, que dos 900 milhões de euros apanhados no escândalo suíço (SwissLeaks), com ligações a Portugal, só foram recuperados (?) 272 mil euros, isto é, 0,03%. Esta é a notícia mais recente de uma situação há muito revelada.

Esta constatação merece algumas considerações.

Um velho caso …

Este escândalo veio a público na imprensa portuguesa no início de 2015, por revelações de documentos disponibilizados pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ), tendo como centro das informações o banco inglês HSBC na Suíça. Contudo os dados são de anos anteriores e resultam da apropriação indevida por Harvé Falciani, que tencionava vender essas informações a outro banco. Contudo acontecimentos diversos fizeram com que viessem a ser (sem qualquer divulgação pública) apropriados pelo Governo francês, que em 2009 os entregou a outros governos e disponibilizou-se para o fazer aos que o solicitassem.

Noticiavam então os jornais portugueses:

“Portugal aparece no 45º lugar da lista com 855,8 milhões de euros depositados no HSBC da Suíça [correspondente ao salário mínimo anual de 125 mil trabalhadores, comparamos nós], espalhados por 778 contas bancárias pertencentes a 611 clientes. Destes, apenas 36% terão passaporte português e haverá um titular, cuja identidade não se conhece, que será dono de 143 milhões de euros”

Ao longo dos anos apareceram outras informações interessantes: em Março de 2015 revelou-se que um inspector das Finanças tinha conta milionária no HSBC e, um ano depois,informou-se que esse inspector está a auditar as Parcerias Público-Privadas.

… «ignorado»

Quando o escândalo foi tema em Portugal todos os responsáveis políticos e supervisores, de então e de antes, manifestaram total desconhecimento da lista disponibilizada pelo governo francês, o que revela ou mentira e hipocrisia, ou ignorância e distracção profundamente perniciosa ao bem-estar dos demais cidadãos ou, ainda, conivência.

Rede internacional de offshores

Os dados revelados sobre o HSBC mostravam, por um lado, a complexidade clandestina da rede de offshores e seus múltiplos tentáculos e coadjuvantes, e, por outro, a posição central da Suíça nessa rede.

É essa rede que permite grande secretismo nas fugas aos impostos e no branqueamento de capitais, constituição de múltiplas empresas para intermediar uma operação, proprietários fictícios (testas de ferro) que por vezes até desconhecem esse seu papel, câmaras de compensação de pagamentos internacionais anónimos, dispersão das fortunas quando sobre elas recai uma investigação, gestores de fortunas de angariação de verbas, advogados relatores de contratos «para cumprir» e até alguns pistoleiros para situações de emergência.

Segundo a Rede de Justiça Fiscal (TJN) tendo em conta o grau de secretismo e os montantes envolvidos, a Suíça ocupa o 1º lugar na rede de offshores mundiais. Se é certo que os EUA (proprietários também de offshores) conseguiram exigir algumas informações sobre os seus cidadãos, tal não invalidou o seu estatuto de «campeão».

«Impoluta» Suíça

Apesar de toda esta situação a legislação portuguesa continua a não considerar a Suíça como um offshore, como se revela pela Portaria 345-A/2016 com as suas actualizações mais recentes.

Limitada troca de informações

Abundam os acordos para troca de informações entre os offshores e os mais diversos países. Contudo funcionam muito parcamente por diversas razões.

Em primeiro lugar porque alguns organismos internacionaispromotores de tal estão minados por conflitos de interesse, consideram que a concorrência fiscal entre países é vantajosa e que apenas há que limitar os seus excessos. Em segundo lugar porque uma informação fidedigna é incompatível com um desacompanhamento dos processos, uma desburocratização total, uma actuação mais ligadas à movimentação de valores financeiros que à actividade produtiva, um secretismo típico desses territórios e instituições. Em terceiro lugar porque a «verdade» revelada por cada offshore é uma ínfima parte da realidade, o que facilmente se deduz do que afirmámos anteriormente sobre o que significa a sua rede. Em quarto lugar porque o pedido de informações traduz-se frequentemente na transmissão ao visado de que está a ser investigado, accionando-se os mecanismos de movimentação de fundos e sua defesa.

Os acordos de troca de informações podem significar para um offshore a melhoria do seu próprio estatuto, pela forma como são olhados e controlados, acabando por representar melhores oportunidades de negócio.

Crimes descriminalizados

Os perdões fiscais são uma descriminalização da fraude fiscal qualificada e, frequentemente, de branqueamento de capitais e outros crimes. O Ministério Público revela-se por vezes disponível para arquivar os processos em investigação quando os visados se disponibilizam a participar num processo de perdão fiscal. Parece até haver uma combinação cronológica entre os crimes em investigação, que o deixam de ser, e a oficialização de processos de perdão fiscal1.

Além disso as baixas taxas pagas são atractivas para que hoje se cometa fraude fiscal para se ter um perdão amanhã: “esperar por uma oportunidade para regularizarmos os impostos [muito provavelmente uma parte] com melhores condições fiscais.”2

Aliás isso corresponde ao que qualquer actual estudante de Economia aprende ‒ quando a força social se sobrepõe à epistemológica, moldando as suas concepções de vida, assente no estrito individualismo, dito racional, ignorando o bem colectivo.

Estas situações explicitam em que medida o político tem perdido autonomia e capacidade de decisão em relação às instituições privadas, tendência das últimas décadas, agravada pelas dívidas soberanas e pelas políticas discriminatórias da União Europeia.

Logo

Tendo em conta as considerações atrás produzidaso resultado final, os miseráveis 0,03%, não espantam. São acontecimentos como este que justificam que a economia não registadarepresente27% do produto oficial.

Os poderosos prevaricadores fogem aos impostos e todos nós vivemos com piores serviços públicos, menor desenvolvimento e mais impostos a pagar. Os offshores estão sempre presentes no nosso quotidiano, sem que a maioria das vezes estejamos suficientes conscientes dessa realidade.

NOTAS

1. Há vários exemplos desta situação em Apanhados de António Vilela, ed. Manuscrito

2. Afirmado numa comissão de Inquérito Parlamentar, citado por Mariana Mortágua no prefácio de Os offshores do nosso quotidiano, ed. Almedina