Os impulsos de revisionismo arfados para o debate público têm esbarrado no muro insuperável da preservação dos dogmas ideológicos como património das humanidades. Pode-se questionar a gesta dos Descobrimentos, mas não se belisca a idolatria do PCP pela Revolução de Outubro, por Lenine ou pelos resultados trágicos da aplicação do modelo de sociedade a que aspiram.
A verdade é que parece haver demasiado chão a fugir debaixo dos pés de uma instituição partidária que teve um papel central no combate ao antigo regime, mas nunca a expressão ambicionada no novo regime pós-abril de 74.
Foge o chão em território nacional e foge muito o aconchego internacional dos regimes alinhados com a ideologia professada. É como se um cidadão, por força das suas opções políticas e das circunstâncias, deixasse de ser reconhecido pelo conjunto de amigos que julgava ter.
Em território nacional, desde 2015, o PCP passou da contestação frontal, em que apenas sublinhava os problemas e propunha um modelo alternativo sem vigorar em nenhum ponto do planeta, à colaboração consequente com uma solução de governo do PS. Mesmo que o estado de espírito fosse o de uma coligação negativa para apear a direita do governo e restabelecer uma certa ordem, a alegada ingratidão dos eleitores expressou-se num resultado autárquico negativo – um resultado desastroso que quase implodiu todo um sistema de organização e de rotação de quadros políticos tão relevante quanto a realidade do partido ser o que maior número de funcionários e territorialidade tem. No fio da navalha do escrutínio e da lucidez dos eleitores e dos cidadãos em geral, ensaiou durante meses e anos o modelo de um partido e vários discursos. Era como se as responsabilidades políticas assumidas em Lisboa fossem apenas na alegria e no resto do território persistisse a tristeza da reivindicação, como se cada Orçamento do Estado não fosse aprovado com o voto decisivo do PCP. Neste quadro de dualidade, os portugueses penalizaram as duas faces. Ainda assim, persiste. Ainda esta semana, depois de meses de agitação em defesa do Aeroporto de Beja, o comité central do PCP não arranjou melhor calendário para reafirmar o apoio à construção do aeroporto de Alcochete que o exato momento em que o maior avião de passageiros do mundo, o A380, se fazia à pista na capital do Baixo Alentejo. Uma coisa em Beja, outra em Lisboa. A reincidência das duas caras.
No contexto internacional, as referências desmoronaram-se. A China rendeu–se ao capital, a Venezuela vai colapsando, as FARC da Colômbia fizeram a paz, a Coreia do Norte já dialoga com os Estado Unidos da América e até o reduto da reserva natural do comunismo, Cuba, assume que o mundo mudou e incorpora mudanças na sua Constituição e no seu modelo de organização. Que mais lhes poderá acontecer? Os cubanos a reconhecerem a propriedade privada, o investimento privado, a substituírem o comunismo pelo socialismo e a abrirem a possibilidade do reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Digamos que, para um edifício ideológico tão encarquilhado, é dose. Compreende-se por isso que o quase orgulhosamente sós suscite a correspondente azia e desnorte sobre as reivindicações presentes e os caminhos a prosseguir, mesmo que as opções dos últimos anos não deixem grande margem de manobra. Entre os rugidos sindicais, as figuras de estilo discursivas e a inevitável responsabilização pela governação pós-2015, o quadro não se afigura fácil. O eleitorado está mais pragmático e penalizará quem desestabilizar o caminho percorrido, a menos que a consistência do gelo fino seja quebrada por ação ou pelas circunstâncias.
Por mais eloquentes que sejam as proclamações, há um momento em que as instituições e os seus protagonistas em funções executivas são chamados à terra. É assim nos governos nacionais como nos governos locais. E isto excetuando o BE e o PAN – quase sem funções executivas, todos sabem.
Há demasiado chão a fugir debaixo dos pés do PCP. Fingir de morto dificilmente será solução, demarcar-se da governação como se não tivesse responsabilidade política não ajuda. Não está fácil, e a inexistência de um exemplo de um país ou território de referência do seu modelo de governação coloca-o ao nível do Bloco de Esquerda.
E o verão que não chega!
NOTAS FINAIS
Saltos Altos O caos gerado por um incêndio junto à A12, em Palmela, sublinha a presença da traumatizante experiência dos incêndios de 2017 no subconsciente dos cidadãos e a necessidade de reforçar a pedagogia geral sobre os comportamentos e a não ampliação dos riscos em situação de emergência. É preciso não confundir informação com propaganda. A tragédia dos incêndios na Grécia aprofunda esta necessidade contínua de trabalho pedagógico para os comportamentos e os riscos.
Sapatos de Vela Numa sociedade em que muitos não cumprem, em que o esquema prolifera, em que o jeitinho para contornar a norma se pavoneia e em que os exemplos não surgem de cima, nas ações e nas inações, só pode acontecer que mesmo na sublime expressão da solidariedade popular da reconstrução das áreas ardidas possam existir abusos. Para alguns, o chico-espertismo é toda uma filosofia de vida.
Chinelos O prontuário do ministro das Finanças só peca por tardio. Tivesse assumido a liderança do Eurogrupo mais cedo e teria havido redobrados cuidados na elaboração do Orçamento do Estado e nas expetativas geradas pelas narrativas partidárias. A política é feita de opções entre os recursos e as necessidades. Não havia necessidade!
Escreve à quinta-feira