Amalia Bautista. Afastar esse “lixo que apodrece o coração e asfixia a alma”

Amalia Bautista. Afastar esse “lixo que apodrece o coração e asfixia a alma”


Em “Coração Desabitado”, a poeta espanhola erige um monumento avesso a qualquer tipo de apoteose lírica, subjetiva, ou mesmo melancólica – que parece ter-se tornado numa tonalidade englobante de tanta poesia contemporânea


Poeta nascida em Madrid, em 1962, Amalia Bautista conta já com 30 anos de atividade poética – “Carcél de Amor”, o seu primeiro livro, é de 1988. Já publicada em Portugal numa recolha de Joaquim Manuel Magalhães (“Trípticos Espanhóis – 3º”) e num outro livro, “Estou Ausente” (Averno, 2013), que saiu pela mesma editora desta antologia, Amalia é conhecida pela parcimónia com que edita, pelo esquema prosódico que lhe confere, por vezes, um vago sabor anacrónico e por um diálogo, intenso, com a tradição poética – de Ovídio ao “Cântico dos Cânticos”, passando por diversos topos clássicos da lírica. Paradoxalmente, numa época onde a referência clássica é suplantada por outros universos – não sendo isso necessariamente mau -, esta mesma referência, esta citação, ora explícita ora implícita, da tradição lírica, este entrelaçamento da poesia com a sua tradição, com toda a bateria de vocábulos e de ecos que constroem uma contemporaneidade não linear, acaba por concorrer para esse vago sabor anacrónico, como se essa reivindicação de um desejo além de qualquer culpa, livre, insubmisso e feroz, fosse apenas possível convocando um tempo e um espaço que já não é o nosso.

Ao optar por um critério temporal de organização, esta antologia (“Coração Desabitado”) com seleção e tradução de Inês Dias, permite estabelecer uma linha evolutiva na poesia de Amalia Bautista, de uma mais forte convocação da tradição poética a uma progressiva depuração, a uma rarefacção dos ecos. Mas dá-nos, também, uma visão integrada das linhas de força, dos motivos e momentos maiores – faltará, talvez, “La Confésion de Adán”, poema de ressonâncias teológicas mas não só – desta poeta que é considerada como um dos nomes mais relevante da poesia contemporânea espanhola. 

Convém começar por realçar que os setenta poemas que fazem parte desta antologia correspondem a, sensivelmente, metade da produção poética global de Amalia Bautista – já incluindo o seu último livro, de 2013, “Falsa Pimienta”. Pouco mais de uma centena de poemas em trinta anos: esta parcimónia, esta economia, em si mesma não significa nada, é apenas um dado objetivo, estatístico, da sua produção poética – haverá certamente outros poetas com produção tão escassa. No entanto, ganha outras dimensões a partir do momento em que passe a ser encarada como um motivo interior à própria obra. E, de facto, esta raridade da escrita não parte apenas de uma ideia bastante determinada relativamente ao fazer da poesia – que ela não é um acontecimento comum, disponível, mesmo quando parte do quotidiano ou a ele adere -, mas corresponde também a um diagnóstico relativamente à poesia contemporânea que facilmente pode ser transposta para a realidade portuguesa. A uma tagarelice como modo único de relação à linguagem, corresponde, segundo Amalia Bautista, duas modalidades de poesia que, por mais que se deem ares de transgressão, são na realidade declinações dessa linguagem que invadiu todos os poros da língua: uma, que se encontra “bêbada de acontecimentos”, produz textos “abstrusos, vazios e pretensiosos”; a outra, apenas aparentemente antagónica a esta, diz respeito aqueles “versificadores” que se limitam a fabricar “de acordo com o ‘poético’, conceito do qual se deve fugir como da peste”. Contra aqueles, portanto, para quem a poesia é um modo de expressão – pessoal ou comunitário, tanto faz -, ou contra aqueles que pretendem delimitar um âmbito – o ‘poético’ – que permaneceria a salvo da tagarelice, Amalia Bautista erige um monumento avesso a qualquer tipo de apoteose lírica, subjetiva ou mesmo melancólica – que parece ter-se tornado numa tonalidade englobante de tanta poesia contemporânea sobre a qual Amalia, num poema intitulado “Negra Bílis”, escreve o seguinte: “Dizem que os venturosos e os néscios/ chamam melancolia a este lixo/ que apodrece o coração e asfixia a alma”. É este lixo que tantas vezes é preciso afastar para que se consiga libertar breves lampejos de desejo em estado concentrado. 

Num dos seus momentos maiores, “Fios de Seda”, que se encontra integralmente reproduzido nesta antologia e que consegue retomar um dos lugares clássicos da lírica sem que daí resulte um desastre completo – são poucos os poetas que conseguem manejar esta matéria sem produzir bocejos pretensiosos -, Amalia dá-nos aquilo que pode ser considerado uma espécie de ars poetica: “Construo mundos mais ou menos claros,/ Mais ou menos perfeitos, mais ou menos/ Geométricos. Construo mundos/ À altura dos piores pesadelos”.

Mesmo quando ameaça cair no confessionalismo ou no lugar-comum poético – e por vezes aproxima-se perigosamente deste último -, a poesia de Amalia consegue libertar uma força que sobrevive a qualquer imagem menos conseguida, a qualquer deslize possível. E isto deve-se ao facto de a sua poesia, em linha, aliás, com a tradição lírica, partir sempre de um desastre, de um pesadelo, de uma ferida que o poema invoca ou convoca – como se o pesadelo fosse, de facto, a sua medida íntima e como se a sua perfeição fosse avaliável por se encontrar “à altura dos piores pesadelos”. Mas, igualmente, através de uma espécie de estratagema, de desvio que é instaurado por aquilo que se pode chamar de versura – uma imagem que chega do filósofo italiano Agamben e que designa o local, no fim do campo, em que o arado dá a volta. Inúmeros exemplos se poderiam dar desses finais dos poemas que ilumina subitamente e obrigam a reler, desde “A Casinha de Chocolate”, que termina com “‘Abandonai toda a esperança’”, passando por “O Mensageiro” e o seu “Acabo de matar o mensageiro”. Mas talvez o momento em que esse desvio é mais evidente seja o primeiro poema de “Fios de Seda”: “Pensaram que era a paciente esposa/ de um herói. A que espera noite e dia/ tecendo e destecendo. A que ignora/ que nunca volta o mesmo que partiu./ E apenas sou uma maldita aranha”.

À superfície, este poema começa com uma metáfora clássica da escrita: aquela do tecido, da tessitura, e da sua relação com a ausência (normalmente do amado). Se a poesia de Amalia Bautista se limitasse a jogar com estes lugares da tradição lírica, mesmo que juntando a isso a coloquialidade, pouco interesse teria além da revisitação de lugares clássicos. No entanto, o último verso acaba por abalar a referência a Penélope – que, na “Odisseia”, fabrica um sudário para Laertes enquanto espera por Ulisses – jogando contra ela um outro mito, Aracne, aquele da mulher que desafia uma deusa com a sua mestria e é transformada em aranha – António Franco Alexandre, um dos nossos maiores, também tratou esse mito em particular, em “Aracne”. Aliás, tal como em diversos outros lugares, não se trata de lançar uma contra a outra, mas de as tornar indiscerníveis: Penélope já não produz um poema lírico sobre a ausência do amado, mas um “fio,/ transparente e tenaz como uma insónia,/ que te atou à minha vida para sempre”.

Esta é, de facto, uma poesia da armadilha, que de uma metáfora do tecido, da tessitura e de uma languidez que acompanha tantas vezes a forma como a tradição lírica é tratada contemporaneamente, passa para a de uma teia onde algo é capturado ou mesmo morto – “Em Dieta”, por exemplo, surge uma espécie de desejo sôfrego: “Deitei-me sem jantar e nessa noite/ sonhei que te comia o coração”; em “As cevadilhas”, é um desejo que nasce em qualquer sítio, mesmo em “subúrbios tão tristes como o homem”, acabando o poema a dizer, seguindo a comparação: “surpreende-me que sejam venenosas”. Ganha, com isto, toda a sua força, a sua “feroz ternura”, a sua luxúria (“Não pode haver pecado nesta entrega/ neste desfiar-se que impede o nada,/ neste acto de fé./ Que ninguém se lembre de nos vir com uma história/cheia de repressão e negações”). Ao mesmo tempo que assume um tom menor – já não é de Penélope que se reivindica, mas de uma pequena aranha, de uma flor ornamental e tóxica -, reivindica para o poema uma pulsão excessiva, maior que a vida e a morte (no estribilho de “Sobre o Cântico dos Cânticos”: “Porque é tão forte o amor como o amor, mais forte do que a morte e do que a vida”). É esta pulsão incontrolável, esta força que torce o poema e as palavras, que lhe confere contornos precisos (“A Casa da Neblina”) e a que Amalia Bautista chama de “amor”, que permite a inversão de um dos motivos clássicos da lírica: a passividade do amante. São diversos os lugares, de facto, onde este comparece. A título de exemplo, citemos “Enigma”: “(…) E, no entanto, eu sentia/ que a minha pele se resgava em farrapos/ cada vez que as tuas mãos me tocavam,/ que os teus olhos eram como de aço/ e faziam com que os meus doessem”. E se esta passividade pode chegar ao ponto de tolerar “o ponto extremo/ da crueldade, do ódio ou desprezo” (mas não a “ingratidão que vem do esquecimento”), se, por causa disso, o poema se encontra do lado dos incuráveis (“E eu, a mais incurável de todos/ desde que me arrancaste o coração/ e o puseste à venda num mercado”), se quer ser “a mulher de um mercenário/ de um poeta ou mártir”, se o poeta é equacionado a um louco que “detém a verdade que os outros desconhecem” (num poema sugestivamente intitulado “Messias”), isto significa que esta passividade hiperbólica permite, igualmente, a própria possibilidade de dizer “eu”. Um pouco como o mito de Eco, que diz “eu” na situação mais pobre possível – quando se encontra obrigado a repetir sempre a palavra de outro -, também na poesia de Amalia Bautista o sujeito lírico nasce tantas vezes dessa passividade, dessa escravidão (“sou escrava do amor e do meu amado”) a que não pode escapar. Mas no fim de toda esta passividade, no lugar preciso em que já nada pode fazer, seja sob a forma de lamento (“Nem te lembraste de me dar um nome”, no poema “Nu de Mulher”) seja sob forma lutuosa (“nunca mais voltarei ao cemitério/ até o meu telefone tocar/ e a tua voz me pedir um encontro”, de “Necrofilia”), resta o prazer da entrega. É este que é primeiro relativamente a qualquer passividade, é este que é feroz ao ponto de “matar o mensageiro”, é este que é superior a qualquer culpa: “é minha a culpa/ é meu também o prazer da entrega”.