24 de julho de 1964. A “manssada” noite dos touros sem sangue

24 de julho de 1964. A “manssada” noite dos touros sem sangue


Um cartaz de nomes fortes: Luís da Veiga, João Núncio, Mestre Baptista, José Lupi…


Manssada: o termo era giro e vinha a propósito.

A Grande Corrida da RTP transformara-se num fiasco. A culpa, diziam todos em uníssono, foi dos touros.

Touros moles, mansos, sem sangue. Talvez com água morna a correr-lhes pelas veias. Nenhum daqueles touros de Alberti: “Negro touro saudoso de feridas/ Chifrando-lhe à água azul suas paisagens/ E revendo cartas e equipagens/ Aos comboios que partem rumo às corridas”.

A imprensa incendiava a discussão: que bichos destes, escolhidos há meses, escolhidos a dedo, deveriam era ser exportados para Espanha. “Touros de Passanha em Espanha!”, era o brado dos jornalistas aficionados.

Mas nesse noite, no Campo Pequeno, era o que havia. Ou pior: era o que se podia arranjar. Luís da Veiga, o Príncipe do Toureio, era supranumerário. Entrava primeiro em lides, não fazia parte do cartaz, era uma figura etérea acima de todas as outras. Lamentava-se, por outro lado, que não deixassem medrar a sua juventude de qualidades inequívocas à custa de interesses financeiros confessados mas inconfessáveis. E recordava–se Gallito, o espanhol de estirpe, família enorme de matadores, que atuara em Portugal praticamente criança com um sucesso inaudito.

O Príncipe teve de se haver com um bicho preguiçoso. Bem podia espicaçá--lo que o boi, moita. Encostava-se às tábuas como se esperasse as chocas que o levariam de volta ao túnel. A populaça assobiava, mas todos nós sabemos como os bovinos são alheios aos assobios. Ainda não se inventaram assobios vermelhos berrantes que os façam reagir enervados, prontos para tudo.

O cavaleiro recusou os peões.

Era ele e o touro. Mano a mano.

Rodeou-o em altiva provocação. Fê-lo cheirar o suor do cavalo, fremir as narinas largas com a excitação da batalha. Foi recuperá-lo lá no fundo da sua inércia e trouxe-o para o centro da arena.

Só por si seria uma vitória.

Mas soube marcá-lo, igualmente, a bandarilhas francas.

O bicho, acuado, quis a revolta, a vingança. Tornou-se, nos volteios da montada, um desenho em movimento a vermelho e negro.

Talvez nunca tenha sido saudoso de feridas, mas sobre o dorso escorria-lhe o sangue contraditório à mansidão.

“Que sistema de regos e drenagens/ No mar ensaiam tuas investidas?”

Depois veio João Núncio e ouviu a música a que dava direito o seu prestígio.

Pedro Manso, Varela Cid, David Telles, Mestre Baptista, o revolucionário que ameaçava os cimentos do trono.

E os touros, mansos, indiferentes.

Uma irritação miudinha entrando pelos poros, subindo as veias, criando comichões no coração.

David Telles era, por sua vez, a insubordinação montada. Recusava-se a aceitar a velha norma que manda dizer que quando um não quer, dois não pelejam.

Mestre Baptista foi arrancar o animal à sua gruta escura e trouxe-o à luz perante a maior ovação da noite.

E houve ainda tempo para José Lupi e Alfredo Conde, o homem que cravava ferros a duas mãos.

Mas essa noite do Campo Pequeno era a noite dos touros timoratos. Não como o de Alberti: “Nostálgico de um homem com espada/ De sangue femoral, gangrena feia/ Já ninguém há de deter-te o passo forte”.

A manssada de Lisboa não teve passo forte. Perdeu-se numa melancolia da qual fizeram até parte os grupos de forcados incapazes de excitarem os bichos ao ponto de os verem investir contra as suas fileiras de valentes. Em redor da arena, os aficionados sentiam a frustração dessa negativa. Durante três horas e meia tiveram de suportar a teimosia inativa das feras. Feras mansas, saudosas de preguiça.

A pouco e pouco foram saindo. Não surgiam motivos para que o inteligente anunciasse algum ferro suplementar. Os dorsos de azeviche não aceitavam a obrigação do combate nem a nostalgia do sangue. Não, nenhum deles era como o touro de Alberti: “Corre, touro, ao oceano, investe, nada/ E a um toureiro de espuma e sal e areia/ Já que intentas ferir, fere e dá morte”.

O Campo Pequeno parecia demasiado grande.

afonso.melo@ionline.pt