Os vira-casacas, Camilo e Savonarola


Apesar do fervor característico dos cristãos-novos, os “vira-casacas” dizem-se agora “moderados”. O que me faz recordar o que escreveu Camilo: “São os piores, porque são mistos – têm três doses da bílis azeda dos três partidos”


Quando vejo, oiço ou leio alguém a dizer que perdeu sentido ser-se de esquerda ou de direita, tenho a certeza absoluta de que se trata de pessoa que já foi da extrema-esquerda e ainda está em trânsito para a direita, ou já lá chegou, mas continua a tentar justificar as suas reviravoltas e a exorcizar os seus fantasmas. 

É sempre esse o caso de pessoas que renunciaram àquilo que proclamavam nos seus delírios esquerdistas, nomeadamente, à violência que preconizavam e às ameaças que dirigiam à “burguesia” considerada inimiga. Não tinham adversários, só tinham inimigos. Mas, às tantas, por variadas razões – entre elas a estabilidade da democracia pluralista, a segurança duma carreira ou tão-só as oportunidades de negócio – tais pessoas decidiram libertar-se da “canga” esquerdista, dos seus ideais de luta, da solidariedade política e da acção colectiva, para abraçarem um individualismo puro e duro, rendidas ao poder, à direita e à ideologia neoliberal. Mas há coisas a que não conseguiram renunciar, como por exemplo: o sectarismo, o moralismo e a doutrinação política. Chegam mesmo ao ponto de se considerar mais “democratas” do que os próprios democratas de sempre.

Apesar do fervor característico dos cristãos-novos e do zelo dos convertidos, os “vira-casacas” dizem-se agora (com toda a legitimidade, atenção!) “moderados” ou “temperados” pelas circunstâncias do tempo e do meio. O que me faz recordar o que escreveu Camilo no proémio ao seu Perfil do Marquês de Pombal: “Chamo ‘temperados’ aos que se atemperam às circunstâncias do tempo e do meio. São os piores, porque são mistos – têm três doses da bílis azeda dos três partidos. São a mentira convencional – a máscara. Déspotas para zelarem a liberdade, livres para glorificarem o despotismo”. Mas, como dizia um personagem da sua novela Estrelas Propícias: “A sociedade aplaude os virtuosos, mas desadora os que fazem da sua virtude uma tribuna para lhe censurar as fraquezas”.

Há, entre estes “vira-casacas”, os que filosofam, num jeito profundo e grave, sobre os caminhos ínvios duma História que eles distorcem a seu bel-prazer, regra geral se os verdadeiros protagonistas e/ou principais testemunhas já estão a fazer tijolo na quinta das tabuletas. Gostam de posar para a posteridade, ao mesmo tempo sisudos e meditativos, circunspectos e a olhar o infinito, o que me faz, mais uma vez, regressar à obra de Camilo, desta vez às suas Vinte Horas de Liteira, onde ele diz isto: “O boi é o quadrúpede que mais se parece com um filósofo. Vê tu o passo mesurado, grave e cadente de um boi! o olhar meditativo! a sisudeza do aspecto! o ar revelativo de um complicado trabalho intelectual que se está elaborando naquela enorme cabeça! Há grandes filósofos inquestionavelmente menos sérios e cogitativos que o boi!”. Só que, quem posa não se dá conta…

O que mais me irrita nestes “convertidos” é o insuportável pendor que têm para o moralismo. São hoje tão intolerantes na sua “virtude” como outrora foram na sua “ideologia”. Seriam até capazes de lançar as suas obras ímpias, elaboradas in illo tempore, a uma medieval “fogueira de vaidades” como aquelas que frei Jerónimo Savonarola mandou acender, em Florença, para nelas queimar as obras de Dante, Boccaccio e Petrarca, manuscritos e pergaminhos de grande valor, alaúdes, violas e harpas, obras-primas da pintura – a tal ponto que até Botticelli, tal como outros pintores ilustres, muito dados à pândega e à vida dissoluta, também foram lançar à fogueira, transidos de medo e arrependimento, os seus cadernos com estudos, esboços ou “croquis”. E não deixa de ser inquietante pensar que foi um confidente ilustre de Lourenço o Magnífico, um intelectual tão culto e refinado como Giovanni Pico dei conti della Mirandola e della Concordia, mais conhecido como Pico della Mirandolla (1463-1494) – filósofo humanista e poliglota de saber enciclopédico, além de pederasta de espírito aberto e livre – que se deixou fascinar pelo monge iluminado e logrou convencer o banqueiro e soberano florentino a nomear o brutal Savonarolla para governar Florença, o que ele fez à custa de muitas imprecações e censuras, fogueiras, torturas, assassínios e sermões apocalípticos.

Frei Jerónimo é o que se viu, mas Camilo também tem que se lhe diga, embora, tal como Pico della Mirandolla, seja um génio do pensamento e das Letras. Coisa de que nenhum “vira-casacas”, creio eu, se pode louvar. Todavia, os “vira-casacas” pelam-se por condecorações, tal como Camilo se pelava por ser visconde, embora, antes de o ser, tenha vergastado os viscondes sem piedade. À procura dum burro, escreveu, em 1856, numa carta a um amigo: “Vejo que é mais fácil encontrar aí e aqui uma dúzia de viscondes do que um burro regular. Talvez se desse a evolução darwinista. A gente vê passar o visconde e não vê o burro incluso. Requer o olho científico, experimental, que Vossa Excelência não tem nem eu”…

A Camilo, sempre que o leio, perdoo tudo. Aos “vira-casacas” é que não consigo!

 

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990