O arguido ainda não foi julgado e já está condenado: a juíza aplica-lhe uma multa, logo a abrir a sessão, por não ter aparecido no próprio julgamento. Carlos faltou sem avisar e acaba julgado à revelia por ter furtado roupa de uma loja do Centro Comercial Vasco da Gama. Ainda assim, o tribunal parece ter dúvidas sobre os verdadeiros contornos do crime.
G. das Dores, o vigilante que estava de serviço, confessa que já conhecia o suposto ladrão. “É um senhor que tem causado bastante prejuízo à loja”, começa por contar à juíza. O modus operandi nunca varia: Carlos escolhe uma série de peças, entra nos provadores – o único sítio da loja onde não há câmaras –, embrulha cuidadosamente as etiquetas em papel de alumínio para não darem sinal à saída e, a seguir, veste a maior quantidade de roupa possível. Camisas em cima de T-shirts, camisolas sobre polos, calções debaixo de calças e chapéus por baixo de outros chapéus. Sobreposição sobre sobreposição, abandona a loja tranquilamente e sem levantar suspeitas – ainda que aparente ter engordado pelo menos dez quilos em menos de dez minutos.
Só que, há umas semanas, o plano deu para o torto. Carlos entrou na loja, escolheu camisolas e calções – já sob o olhar desconfiado de G. das Dores – e dirigiu-se aos provadores. Só no interior, frente aos espelhos, percebeu que se tinha enganado nos números das peças. A roupa não lhe servia. Ainda tentou encolher a barriga, fez contorcionismo chinês, inspirou fundo como se estivesse numa aula de ioga. Mas a roupa simplesmente não servia.
“E olhe, sotora juíza… quando saiu dos provadores, saiu disparado da loja a correr, com os artigos na mão. Ora… eu fui a correr atrás dele e ele, quando me viu, atirou as peças de roupa para o chão. Caíram dentro da loja. Continuei a persegui-lo, agarrei–o, trouxe-o de volta para a loja e chamei a PSP”, continua a explicar o segurança.
“Quando iniciou a perseguição?”, pergunta a juíza, meia desconfiada.
“Mais ou menos a meio da loja.”
“Se ainda foi dentro da loja, como é que o senhor sabia que ele não tencionava pagar a roupa?”
“Porque ele já estava referenciado e, normalmente, ele sai sempre com a roupa. Além disso, não se estava a dirigir para as linhas de caixa.”
“Mas veja uma coisa: ele podia querer dar umas voltas à loja antes de ir pagar, é uma coisa comum. Além disso, há expositores de roupa em muitos sítios, incluindo mesmo junto à saída. Nada impede uma pessoa de ir a um desses expositores e, depois, voltar para trás para pagar na caixa. Ou não?”, insiste a juíza. Só que o vigilante bate o pé: “A intenção dele não era essa”. E, logo a seguir, volta a descrever como o suposto ladrão saiu com as peças de roupa debaixo do braço, enroladas como se fossem um jornal.
“Saiu mesmo da loja com os artigos?”, continua a juíza.
“Sim, mas ao fugir atirou-os, ao longe, para cima de uns expositores”.
“Explique-me lá como é que uma pessoa sai de uma loja com roupa e consegue arremessá-la vários metros, para cima de expositores que estão dentro dessa mesma loja?”
“Doutora… eu tenho 21 anos de vigilância…”
“Já percebi que o senhor traçou o perfil do arguido. Aquilo que está a descrever, o arguido conseguir atirar peças de roupa a uma distância de três metros… isso não parece um arguido, parece um atleta profissional.”
A outra testemunha do furto, Hélio, agente da PSP – que se apresenta ao tribunal com uma t-shirt branca, velhinha e com tantos buracos que o polícia parece ter acabado de chegar de uma carreira de tiro em que serviu de alvo aos colegas –, também não parece ter grande sucesso na tarefa de convencer a juíza de que Carlos é ladrão de roupa e dos recorrentes.
“Este senhor era seu conhecido?”, começa por lhe perguntar a juíza.
“Este, por acaso, não. Mas já está referenciado pelos meus colegas por outras situações.”
“Chegou a ver os artigos furtados?”
“Sim, eram peças de roupa.”
“Naturalmente. Era uma loja de roupa, senhor agente. Se fossem eletrodomésticos é que era de estranhar”, devolve a juíza, que pouco depois suspende a sessão. O arguido, que afinal pode ser um atleta profissional, terá mesmo de estar presente na leitura da sentença. E, para garantir que desta vez não falta, a polícia vai buscá- -lo. Em breve.