Há coisas na vida, sobretudo na tenra idade, a que só mais tarde damos valor e são quase sempre resultado de imposição, obrigatoriedade ou, para os mais liberais, recomendação incontornável.
Quem não se lembra de uma advertência, um dever, uma imposição dos pais, de um professor ou de alguém mais velho que só muitos anos depois damos conta da importância que teve na nossa vida? Ensinamentos que passam de geração em geração, contos, histórias ou livros que nos foram impostos, mas cujo valor e memórias perduram para sempre, e só mais tarde damos conta disso.
Comigo, entre muitas recordações, há uma que até hoje fico contente por ter sido uma obrigação. Pelo que me ensinou, pelo que me despertou e pelo que me fez sonhar – “Os Maias”.
Uma valente seca, pensei eu quando o meu pai chegou a casa com o enorme e volumoso calhamaço e exclamou: “Aqui está o que a professora de Português mandou comprar! Tens de o ler!”
Fiquei aterrorizado com as quase mil páginas de leitura e o emaranhado de personagens descritas! Sem uma única figura! Nem mesmo uma capa atraente! Não me dizia nada, absolutamente nada! Para mim, não passava de um tijolo em forma de livro que eu era obrigado a ler!
Li-o, a muito custo! A sensação que tinha era que as páginas aumentavam independentemente do ritmo a que me debruçava nelas. Queria eu lá saber do Ramalhete, do Carlos ou da Maria Eduarda! Cada hora que passava a ler a obra era mais uma hora que perdia para jogar à bola ou cultivar o ócio na rua com amigos.
Numa frase: uma seca!
Mas teve de ser! E lá o li! E, aparentemente, nada ficou! Fiz o ensaio na escola e o resultado foi positivo. Missão cumprida e o tijolo foi atirado para um canto da secretária. Nunca mais lhe pegaria – pensei eu!
Passaram-se uns anos e, pelo meio, outras obras se meteram. Também elas obrigatórias e, claro, também elas uma seca!
No processo de emancipação natural e de abandono do ninho dos pais, ao arrumar as tralhas, cruzei-me com todas elas. E à medida que as arrumava nos caixotes, uma a uma, lá as ia folheando e relembrando algumas passagens, esboçando sorrisos à medida que, agora, volvidos vários anos, parecia compreender melhor o conteúdo e as mensagens nelas veiculadas.
Empilhadas em caixotes e prontas para rumar a uma nova estante, lembro-me claramente de pensar (não para todas, mas grande parte delas) “ainda bem que fui obrigado a ler isto”!
Das centenas de livros arrumados, entre manuais escolares, obras obrigatórias ou simplesmente livros de estudo, deixei um para último, o qual tive o cuidado de colocar no topo de um caixote. Claro está, “Os Maias”, de Eça de Queiroz.
Foi o primeiro livro que voltei a reler! E ao contrário do passado, as centenas de páginas esvoaçaram num curto espaço de tempo! A cada intriga, a cada descrição e a cada capítulo ia descobrindo novas interpretações, novas perceções do que era (e continuava a ser) a sociedade portuguesa e percebendo que “Os Maias” eram mais do que uma seca obrigatória! Eram (e são) uma obra obrigatória!
Considero-me bastante progressista e nunca fui cético em relação à mudança. Mas há coisas que se devem defender e que se devem conservar! Deixar ao critério de um jovem de 14 anos o livre-arbítrio de escolher uma obra para ler parece ser demasiado redutor nos tempos que vivemos.
Nada contra a livre escolha mas, neste caso, a livre escolha deveria ser acompanhada pela obrigatoriedade de leitura de uma obra de autores de excelência nacionais!
Acho que esta medida contribui para o empobrecimento da cultura nacional, da compreensão de como é a sociedade portuguesa e para a banalização da escrita. É que, para lá da mensagem e da crítica social de Eça, está a sublime forma como escrevia.
Não concordo de todo com a liberalização da escolha das obras de leitura que agora entra em vigor. Estamos rodeados por demasiada leviandade comunicativa criada pelas redes sociais e degradação do vocabulário. A obrigatoriedade de ler uma obra como “Os Maias” não é uma seca. É uma bênção!
Escreve à quinta-feira