Os espalha-brasas


Se lá fora há Trump, por cá também temos espalha-brasas no ativo. Esperemosque a incandescência do lume ou a cinza não sobrem, uma vez mais, para os portugueses


Nas dinâmicas mediatizadas das nossas sociedades como nas realidades menos complexas das nossas aldeias, habituámo-nos a ter umas personagens que agiam ou falavam irrefletidamente, geralmente com alarido, os denominados “espalha-brasas”. Os espalha–brasas eram, na maioria dos casos, inconsequentes, sem comportarem danos relevantes ou colaterais, além da irritação do momento da pesporrência do exercício.

 

Trump como Espalha-Brasas

O mundo mudou. Com Trump abriu-se toda uma panóplia de exercícios reiterados de “espalha-brasismos” cada vez menos irrefletidos, cada vez mais sintonizados com uma agenda política centrada no umbigo e no afago de uma América profunda que delira com um exercício de afirmação pessoal e federal que goza com as fraquezas das lideranças do mundo para colocar os estritos interesses americanos no centro de tudo. Mas se os fins não são irrefletidos, os meios são um desastroso exercício político à imagem de anos da construção do seu império empresarial. Este espalha-brasas sabe o que está a fazer, quer fazê-lo por afirmação e provocação e está-se a borrifar para o que os outros pensam. É muito mais perigoso porque tem noção do que está a fazer, foca-se nos resultados que pretende alcançar e evidencia as fragilidades dos nossos mundos.

É claro que tem a vida facilitada quando não existem lideranças na União Europeia, quando não há coesão política no projeto europeu e quando não existem respostas integradas para corresponder às necessidades das pessoas e das nações, abrindo todo um caminho aos populismos, aos nacionalismos e a todos os “ismos” que já nos fustigaram noutros tempos.

É claro que se pavoneia à margem do bom senso das relações internacionais, das convenções e do protocolo, quando tem na Europa lideranças sem fulgor e uma soporífera complacência com a inqualificável realidade de ter um presidente da Comissão Europeia etilizado em reuniões oficiais, em que os burocratas tentaram mascarar o insustentável equilíbrio do ser como sendo resultado de uma crise de ciática. Mais do que ciática, é um sintoma de decadência, de desagregação e de incapacidade de se dar ao respeito. Logo numa cimeira da NATO em que participavam o presidente norte-americano e o presidente turco.

Numa Europa e num mundo configurados e convencionados pelos mínimos, Trump tem afirmado uma América conservadora, egocentrista e disruptiva das situações em que, segundo a sua visão, os interesses americanos não estão devidamente acautelados. Sem olhar à forma, foi assim com o México, com o Canadá, com o G7, com a NATO, com a União Europeia, com o Reino Unido, com a China e com tudo o que signifique uma ponderação global, não centrada nos interesses da América. Só não foi assim com Putin, como já não tinha sido no caminho para a Casa Branca.

É perigoso, mas a grande força de Trump como espalha-brasas resulta mais das fraquezas das nossas lideranças que dos impulsos norte-americanos. O enamoramento com Putin, as opções no Médio Oriente como a cimeira com o presidente norte-coreano podem gerar sentimentos contraditórios na América profunda para a qual Trump trabalha, comunica e se exibe. Só tempo o dirá.

 

Os Espalha-Brasas do burgo

Se lá fora há Trump, por cá também temos um amplo leque de espalha-brasas, menos convictos, menos insistentes, mas eivados do espírito de irreflexão e de promoção do alarido. Senão, como interpretar as linhas vermelhas enunciadas pelo ministro dos Negócios Estrangeiros para a vindoura continuidade da atual solução governativa, as afirmações de desvalorização das ruturas dos serviços públicos, em especial no Serviço Nacional de Saúde, a indiferença perante o fervilhar de descontentamentos localizados ou as reiteradas insistências reivindicativas dos apoiantes do governo num quadro de uma negociação orçamental com recursos disponíveis limitados? Com tantos espalha-brasas no ativo, esperemos que a incandescência do lume ou a cinza não sobrem, uma vez mais, para os portugueses. Só nesta semana, soube-se que em maio de 2018 houve a maior concessão de crédito ao consumo desde 2013, a produção industrial diminuiu, as exportações continuam a desacelerar e a execução do investimento público está muito aquém do previsto. Que sirvam de enquadramento para os espasmos orçamentais dos espalha-brasas, num tempo em que os filtros dos cidadãos na leitura da realidade enunciada são decisivos para que não caiam em engodos.

 

NOTAS FINAIS

Intolerâncias Crescem as intolerâncias de certos segmentos da sociedade portuguesa, inebriados pela imposição de nichos de liberdades e direitos da sua áurea de politicamente correto sem pingo de respeito pelas dos outros. A lei, a moral e o sentido estético devem ser de seu gosto. Democratas de pacotilha. O caso da senda proibicionista esboçada nos espetáculos tauromáquicos e sustentada após o chumbo é só um dos exemplos.

 

Perdas nacionais

Em parte dos 14 anos de parlamento, convivi com o João Semedo. Como deputados partilhámos espaços de convergência e de divergência, em Portugal e no espaço ibero-americano, sempre com respeito pelas convicções individuais, elevação, senso, abertura e tolerância. Vai fazer falta!

 

Perdas locais

Nos quatro anos da minha última passagem pela Assembleia Municipal de Vila Franca de Xira, tive o privilégio de testemunhar o sentido cívico, democrático e de participante ativo na construção de uma sociedade melhor do João Quítalo. O exercício tolerante e paciente da presidência daquele órgão, o seu compromisso com a participação cívica e a valorização do movimento associativo como parte da construção de soluções para a comunidade serão sempre uma inspiração. Vai fazer falta. Também em sua memória, o combate terá de continuar.

 

Escreve à quinta-feira