“A tarefa principal é o derrube da supremacia branca em todas as suas ramificações e a constituição de um governo democrático no qual todos os sul-africanos, independentemente da sua condição social, cor ou crenças políticas, vivam lado a lado em perfeita harmonia.” Nelson Mandela escreveu isto em 1967, numa das cartas que enviou da prisão ao executor judicial. A ideia de uma sociedade igualitária e justa em que ninguém seria discriminado pela cor, classe social ou crença religiosa orientou toda a sua vida política.
Se fosse vivo, Mandela faria hoje cem anos. Foi para relembrar o seu percurso, mas também as suas vitórias e derrotas, a sua felicidade e sofrimento, que as cartas que escreveu na prisão foram finalmente publicadas, depois de dez anos de análise e recolha por Sahm Venter. Sob a ameaça da censura, Mandela escrevia principalmente sobre as suas preocupações para com os seus próximos e, por vezes, enfrentava as autoridades sul-africanas para reivindicar os seus direitos e dos outros presos políticos e opor-se a uma política racista que repudiava com toda a sua alma. Nas cartas, Mandela é pai, filho e marido, e não apenas o homem político de que o mundo se recorda. Umas cartas chegaram aos seus destinatários, muitas outras “perderam-se” pelo caminho, alvo da ira da censura dos guardas prisionais sul-africanos.
Condenado a prisão perpétua por “terrorismo” pelo regime do apartheid sul-africano, Mandela viveu numa pequena cela durante 27 anos. Não repudiou os atos de violência que levou a cabo, mas admitiu que a insensibilidade do governo de Pretória fez com que não tivessem o efeito desejado. Entrou na prisão como lutador radical, mas saiu de lá como estadista pragmático, defendendo a via das negociações como estratégia para pôr fim ao regime do apartheid, vigente no país várias décadas. Quando saiu da cadeia conseguiu evitar, por pouco, uma guerra civil num momento em que os africânderes ainda controlavam as forças armadas e a polícia e tinham a maior parte das armas em seu poder.
De lutador radical a estadista Nascido a 18 de julho de 1918 na pequena vila de Mvezo, na província de Cabo Oriental, África do Sul, numa família de nobreza tribal, Mandela deixou a casa onde sempre viveu para ir estudar Direito em Joanesburgo quando tinha 20 anos. Viu–se envolvido num ambiente político radicalizado, mas não descurou os estudos e até constituiu família, tendo-se casado com Evelyn Mase, com quem teve quatro filhos.
Tudo mudou quando o governo de Pretória avançou, em 1948, com a aprovação da lei que deu origem ao apartheid, separando os brancos dos não brancos em todas as vertentes da vida coletiva. Ao confrontar-se com a discriminação racial, Mandela aderiu ao Congresso Nacional Africano (ANC na sigla em inglês), sendo, pouco tempo depois, eleito presidente da secção provincial do Transvaal. Aliando a advocacia à atividade política, o jovem advogado acabou por atrair as atenções das autoridades. As pressões e as intimidações da polícia não o fizeram recuar na defesa de ativistas antirracistas acusados de traição.
A repressão do regime foi aumentando; no entanto, o ANC manteve a mesma postura de não violência que sempre o caracterizou desde a fundação, em 1912. Porém, tudo mudou com o massacre de Sharpeville, em 1960, quando centenas de manifestantes se juntaram frente a uma esquadra para protestarem contra a Lei do Passe, que obrigava todos os não brancos a terem sempre consigo um documento de identificação especial. Perante o protesto pacífico de grande dimensão, os polícias começaram a disparar rajadas de metralhadora, matando 69 pessoas e ferindo mais de 180. Para Mandela e muitos do movimento de resistência ao apartheid, Sharpeville foi o ponto de viragem no combate político. A luta passava a ser violenta e Mandela estava na linha da frente.
Em 1961, o ANC criou o Umkhonto we Sizwe (Lança da Nação), o seu braço armado contra o apartheid. E Mandela foi o seu primeiro líder, passando a viver na clandestinidade. A sabotagem era a principal atividade da organização. Regressado do estrangeiro, onde aprendeu técnicas de combate e demolição, Mandela acabaria detido e, a 11 de junho de 1964, condenado a prisão perpétua.
Mandela nunca deixou de enfrentar as autoridades pela política que praticavam para além dos muros da prisão. “A continuada supressão das nossas aspirações e o recurso à governação através da força empurra cada vez mais o nosso povo para a violência”, escreveu numa carta enviada ao ministro da Justiça, Petrus Cornelius Pelser, em 1969. “Até que o apartheid seja totalmente erradicado, o nosso povo continuará a matar-se entre si e a África do Sul estará sujeita a todas as tensões de uma guerra civil cada vez mais acirrada”, escreveu noutra carta, esta ao presidente sul-africano Pieter Willem Botha, em 1985.
As tensões foram-se avolumando e, em fevereiro de 1990, Mandela foi finalmente libertado. O regime de Pretória estava cambaleante, a pressão internacional tinha sido demasiado forte. Com Mandela em liberdade iniciou-se um processo negocial entre o ANC e o governo para acabar com o apartheid, dando os mesmos direitos políticos e, na teoria, sociais a todos os sul-africanos, independentemente da etnia.
Eleito presidente em 1994, Mandela avançou com um processo de reconciliação nacional que incluísse brancos, negros, mestiços, indianos, uma rainbow nation, como lhe chamou. O seu papel foi decisivo para a consolidação da democracia multiétnica da África do Sul.
Obama. Elogiando os princípios de Madiba, criticando Trump sem o nomear
O ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, participou nas comemorações do 100.º aniversário do nascimento de Nelson Mandela, em Joanesburgo. No seu discurso perante uma multidão de 15 mil pessoas, Obama realçou algumas das lições que Mandela ensinou ao mundo ao longo da sua vida. “Madiba [nome tribal de Mandela] mostrou àqueles que acreditam na democracia e na igualdade económica que terão de lutar mais”, afirmou. “Os seres humanos não vivem apenas de pão. Quando o poder económico está concentrado nas mãos de uns poucos, o poder político segue o mesmo caminho, e afasta-se da democracia”, continuou o ex-presidente dos EUA.
Uma das principais lições de Mandela foi ter sido capaz de abandonar o poder quando achou que o seu trabalho já não era necessário, explicou Obama. “Madiba poderia ter governado para o resto da sua vida – quem se lhe iria opor? Ao invés, guiou a África do Sul e mostrou que nenhum indivíduo possui o monopólio da sabedoria”, acrescentou Obama.
Lições que, segundo ex-líder da Casa Branca, contrastam com o atual estado do mundo, onde duas visões diferentes se confrontam. “Eu acredito numa visão de igualdade e justiça e de democracia multirracial construída com a premissa de que todas as pessoas são criadas iguais”, afirmou Obama. “Acredito que um governo governado por esse princípio é possível e pode alcançar mais paz e mais cooperação na busca do bem comum”, acrescentou.
Obama sublinhou que “não temos outra hipótese se não andar para a frente” e que aqueles que “acreditam na liberdade, na democracia” terão de “lutar com mais força para reduzir a desigualdade e promover uma oportunidade económica duradoura para todas as pessoas”.
Sem nunca se ter referido pelo nome a Donald Trump, o ex-presidente tinha um alvo em concreto para os seus ataques. Com as fake news de Trump sob pano de fundo, o ex-presidente alertou para a necessidade de se acreditar nos factos para poder dialogar com as outras pessoas.
“Temos de acreditar nos factos, sem eles não há base para a cooperação”, explicou Obama. “Se eu disser que isto é um pódio e vocês disserem que é um elefante, será muito complicado cooperarmos”. Das fake news para a negação das alterações climáticas foi um pequeno passo: “Não teremos um base para o entendimento se alguém disser que as alterações climáticas não vão acontecer, quando todos os cientistas do mundo nos alertam para isso”.
“A história mostra o poder do medo e a persistência da ganância. A história mostra com que facilidade as pessoas podem ser convencidas a virarem-se umas contra as outras”, alertou o ex-chefe de Estado.