Ana Moreira. “Realizar era uma vontade que guardava em segredo”

Ana Moreira. “Realizar era uma vontade que guardava em segredo”


De um espaço de diversão abandonado, um filme sobre a crise, ainda. “Aquaparque” marca, em Vila do Conde, a estreia da atriz na realização


Entre “Pas de Confettis”, de Bruno Ferreira, e “Anteu”, de João Vladimiro, estreou ontem, em dia de arranque de Competição Nacional no Curtas Vila do Conde, “Aquaparque”. Curta-metragem que marca o regresso de Ana Moreira ao festival de curtas-metragens, desta vez não como atriz. Como realizadora. Vontade já de há muito tempo para uma história que queria contar há anos. Desde o tempo da crise, a partir do que sobra de um antigo aquaparque. História contada num dia e com duas personagens a partir de um lugar. A piscina-anfiteatro onde os sonhos vão nascer. E morrer. 

Esta estreia na realização com “Aquaparque” vem precisamente 20 anos depois do filme que te lançou como atriz: “Os Mutantes”. Sendo esta primeira experiência na realização, e na escrita para cinema, um objeto completamente distinto desse filme da Teresa Villaverde, também ele tem como protagonista uma uma adolescente numa…

Encruzilhada.

Exacto. Foi acidental isto?

Sim. Não tem nada a ver o trabalho da Teresa com “Os Mutantes” este filme. Podia tê-lo filmado agora como podia ter filmado dez anos depois ou 30 [de “Os Mutantes”]. Demorei o tempo que me foi necessário para querer realizar. Era uma vontade que já me acompanhava há muito tempo mas que não expressava, não verbalizava, guardava um pouco em segredo. Até que finalmente descobri uma história, um lugar, e uma vontade de escrever e de realizar este filme. Depois foi um processo que se foi construindo e que acabou por ser um bocadinho orgânico. Durante muito tempo continuei a fazer trabalhos como atriz, e isto ocupa-te um bocado de tempo – e de cabeça e de alma – até que finalmente, em 2013, decidi sentar-me e escrever este guião. 

Esse ano, ou esse período, está muito presente em “Aquaparque”, que parte dos sonhos, ou o fim dos sonhos, de uma geração a que por essa altura, no pico de uma crise em que o futuro parecia ter desaparecido, se começou a chamar de perdida.

2013 deve ter sido o pico da crise, aquela altura em que os nossos governantes quase que mandavam os nossos jovens recém-licenciados embora. O que surgiu primeiro foi a vontade de escrever para aquele espaço, aquele parque aquático ali à beira da entrada para a Costa da Caparica em ruínas há mais de uma década. 

Um cenário de crise em si, mesmo que seja outra a sua história. 

Funciona quase como uma personagem. A instalação daquele espaço nas personagens – ou as personagens nele. A história foi então construída a partir desse espaço, daquele presente em que estávamos – 2013, com todas essas mudanças no país e muitas pessoas a irem embora – mas também numa lógica económica. Não sabia se ia ter apoio, se ia ter produção, então escrevi a pensar também numa lógica de só um dia de ação, duas personagens e um só décor. Foram estas as balizas que me impus, pensando que caso não conseguisse financiamento haveria de arranjar uma maneira de filmar esta história, com uma equipa reduzida e dentro de um outro formato de produção, ou de não-produção, de uma forma mais guerrilha. A história retrata exatamente um breve encontro entre um rapaz e uma rapariga que, cada um pelos seus motivos, tomam como refúgio aquele espaço abandonado, para aí descobrirem que trabalhar, estudar, seguir os sonhos num país que atravessa uma crise financeira se calhar é algo muito limitado. Nesse momento, a própria sobrevivência é muito complicada. Estão quase como que amaldiçoados logo desde o início.

O aquaparque vem aqui como espaço aglutinador de tudo. O lugar onde os sonhos nascem, mas também o lugar onde eles acabam

O espaço é um pequeno refúgio do mundo exterior ao qual estão a tentar escapar, um espaço que os protege mas que ao mesmo tempo… Também neles a crise provoca desvios de comportamento e na forma como se relacionam com os outros. Nos afetos, nas relações amorosas, nas relações familiares, nas amizades, acho que a crise veio condicionar um pouco a nossa maneira de estar e de agir. No caso, não querendo contar muito do filme, ele toma, num ato mais desesperado, uma decisão que o leva a uma fatalidade.

Há uma frase que marca todo o filme, dela para ele: “Eu não vou salvar-te”.

“Mas fico contigo até ao fim.” É o estarem em movimentos diferentes. Ela ainda quer a vida. Por muitos obstáculos que encontre, ainda tem força para sobreviver. Ele está num movimento descendente, já desistiu, de alguma maneira. É por isso que ela não pode ficar. Tem a consciência de que, se ficar, se vai afundar com ele. E também diz: “Não posso deixar que a minha felicidade dependa de alguém”. 

A partir do momento em que, como dizes, te sentaste para escrever, como foi todo o processo? A experiência de, ao fim de 20 anos como atriz, passar para o outro lado para fazer um filme desde o início?

Estar do outro lado deu-me a possibilidade de trabalhar com muitos realizadores diferentes, de ler muitos guiões diferentes, e aprendi muito com isso. Ler guiões de cinema é muito diferente de ler um guião de uma peça de teatro e isso foi uma grande mais-valia, como toda a experiência do que é estar num décor de uma rodagem e observar as várias maneiras de trabalhar, os vários processos, as várias metodologias. Perceber como é que se tomam riscos, decisões, como é que se resolvem problemas. No entanto, não deixa de ser uma primeira vez, um primeiro filme. O processo de escrita é um processo muito solitário. Parece que estás a escrever para o vazio, que é verdade, e acho que é assim com tudo. Em qualquer prática artística, o início é sempre muito solitário. Mas há processos mais solitários do que outros, e felizmente no cinema há uma altura em que se torna um trabalho de equipa. Depois encontrei a C.R.I.M., a Joana Ferreira com quem por acaso nunca tinha trabalhado em nenhum projeto como atriz mas com quem me cruzava muitas vezes e já conhecia, apresentei-lhe o projeto, concorremos ao ICA e felizmente conseguimos o apoio. E tive a grande sorte de poder ter uma equipa praticamente toda escolhida a dedo. Uma grande sorte, porque pude trabalhar com pessoas que conheço já há muitos anos, que me conhecem desde muito nova. Como o João Ribeiro na direção de fotografia, ou Paulo Belém, com quem trabalhei várias vezes tanto nos filmes da Teresa [Villaverde] como do Jorge Cramez, como assistente de realização. São pessoas que me conhecem muito bem e eu a elas, quer a nível de trabalho quer a nível de partilha e tempo de vida juntos, e com quem foi por isso muito fácil o diálogo. Foi uma felicidade. Não quer dizer que não goste de trabalhar com pessoas que não conheço, será outro desafio. Para este primeiro filme preferi ter pessoas com quem tinha uma genuína confiança. Para os atores fiz audições, para atores e não-atores, porque precisava de uma rapariga que soubesse mesmo patinar. Apesar de já ter feito algumas coisas, a Margarida [Antunes] não é atriz, mas é patinadora, faz campeonatos de patinagem artística, por isso sabia que ela teria um estar performativo à frente da câmara, que saberia estar em palco, vá.

Na piscina.

Que serve também como um palco [risos]. O Rudolfo Marques estava na altura a terminar o conservatório em Teatro. Tinha-o conhecido na rodagem do filme do Cramez, o “Amor Amor” [2017] onde faz uma personagem pequenina, fui buscá-lo para a audição e, entre vários, acabou por ficar. E sobre isto da direção de atores posso dizer que também tudo o que sei aprendi com os realizadores com quem trabalhei. Acho que inconscientemente fui buscar um bocadinho os seus métodos, mais a minha intuição, mais a minha aprendizagem. 

Tiveram quanto tempo de rodagem?

Tínhamos cinco dias, mais um de salvaguarda que não foi necessário. Foram cinco. Era um guião de 14 páginas, um guião pequenino e, mesmo assim, na montagem houve muita coisa que foi cortada. Foi muito eficiente. A rodagem foi muito pacífica, muito tranquila, terminávamos sempre muito cedo, o que deixava toda a gente muito contente. 

Mas vês este filme como uma experiência, um ponto de partida, para outros mais complexos, no futuro? Ou seja, pretendes continuar a escrever e a realizar outros filmes?

Não acredito que só porque fazes uma primeira obra possas depois ficar tranquila com a certeza de que a seguir vais fazer uma segunda e uma terceira e uma quarta. Isto envolve trabalho, envolve muito tempo, é preciso trabalhar arduamente, se calhar ainda mais, para se conseguir fazer o segundo e o terceiro – e, talvez, uma longa. As coisas não são simples. A minha vontade é, sim, voltar a filmar, fazer uma curta que já escrevi que também vem mais ou menos do tempo em que comecei a pensar o “Aquaparque”. Não é assim tão invulgar os atores passarem para o outro lado.

De todo.

Aliás, aqui no festival tens vários casos. O Miguel Nunes [com “Anjo”, estreado no último IndieLisboa e exibido fora de competição, na sessão Panorama Nacional], o Ivo M. Ferreira, que começou também como ator… 

No teu caso, a vontade veio de, depois de tantos anos a trabalhar nas histórias dos outros, quereres contar também tu as tuas?

Como ator, estás sempre dependente de que alguém goste de ti, do teu trabalho, que vá com a tua cara. Ao fim de 20 anos de trabalho só como atriz, já não quero depender apenas disso, dessa ansiedade. Além de que acho que ainda há cá muitas histórias para contar e espaço para realizadores – e para realizadoras. Acho que é preciso lutar-se por aquilo de que se gosta. E eu gosto muito de cinema, seja como atriz, como realizadora, ou como espetadora.