Há precisamente 100 anos Nicolau Romanov, a sua mulher Alexandra, os cinco filhos do casal e até os criados eram acordados a meio da noite pelo médico pessoal do antigo czar. Encontravam-se há 78 dias instalados na Casa Ipatiev, uma mansão que fora requisitada à pressa a um rico negociante de Ekaterinburg, a mais de 1700 quilómetros de Moscovo. Na altura, com a guerra civil entre Vermelhos (bolcheviques) e Brancos (anti-comunistas) a atingir momentos dramáticos, foi anunciado aos prisioneiros que teriam de descer à cave do edifício para garantir a sua segurança. Mas a realidade era bem diferente.
A sorte dos Romanov mudara drasticamente em fevereiro de 1917, quando uma grande revolta popular forçou Nicolau a abdicar do trono. O czar e a sua família foram então transferidos do seu palácio em Tarkoe Selo, nos arredores de Petrogrado, para Tobolsk, na Sibéria. Nesse primeiro momento, receberam um ‘tratamento VIP’. Segundo o historiador Robert Service, autor de “O Último dos Czares” (ed. Desassossego), os Romanov puderam levar consigo para Tobolsk “as joias, muita da mobília, tapeçarias e até a sua garrafeira”, onde pontificavam champanhes, vinhos franceses de grandes colheitas e vinho da Madeira, o preferido do czar. Mas já não foi Nicolau, que de resto nem era um grande bebedor, a apreciar esses néctares. “Quando o vinho chegou a Tobolsk, os marinheiros e soldados pensaram: ‘Por que não haveremos nós de ter acesso a vinhos caros?’”, explica Service.
Entretanto, os Brancos estavam a conquistar terreno e na primavera de 1918 os bolcheviques sentiram necessidade de transferir novamente a família imperial. O destino era Ekaterinburg, um importante aglomerado industrial e comercial situado nos Montes Urais, na fronteira entre a Europa e a Ásia. A viagem não foi isenta de riscos: Yakovlev, o comissário bolchevique encarregado de escoltar o antigo czar, temia que alguns bolcheviques tomassem a iniciativa de atacar a comitiva para raptar e eventualmente executar o antigo soberano.
privações e humilhações Passado esse momento mais tenso, Nicolau pôde respirar de alívio, chegando a Ekaterinburg a 30 de abril. “Não há qualquer indício de que Nicolau suspeitasse de que a sua vida corria perigo até ser levado de Tobolsk para Ekaterinburg [na primavera de 1918] e haver no caminho sérias tentativas de dissidentes comunistas para agirem por conta própria e o matarem. Mas os comunistas que o escoltavam protegeram-no, portanto quando chegou a Ekaterinburg pensou que estava a salvo. Nunca lhe ocorreu que alguém podia ser tão fanático ao ponto de o assassinar e à família. Pensou que na pior das hipóteses seria mantido em prisão domiciliária”, continua o historiador britânico.
Mas as condições de vida da família deterioraram-se rapidamente no decorrer das semanas seguintes. “Em Ekaterinburg tinham menos livros, não podiam usar a biblioteca como tinham usado em Tobolsk, não lhes era permitido irem à missa, como tinha sido permitido em Tobolsk. Em Ekaterinburg a dieta era pior do que tinha sido em Tobolsk e em Tobolsk era pior do que tinha sido em Tsarkoe Selo, mas continuava a ser de alto nível para a maioria dos russos”, esclarece Service. Na casa Ipatiev, o serviço de prata desapareceu das mesas, a qualidade da comida decresceu de forma notória, as belas filhas do czar começaram a ser tratadas de forma humilhante. A liberdade de movimentos dos hóspedes era cada vez mais cerceada, até ao momento em que todos os contactos com o exterior foram interditos, e até os vidros das janelas pintados com tinta escura para evitar olhares indiscretos do e para o exterior.
Licença para matar Em Moscovo, na nova sede do poder, discutia-se o futuro de Nicolau. Segundo Orlando Figes, autor de “A Tragédia de um Povo – A Revolução Russa, 1891-1924” (ed. D. Quixote), Trotsky “preferia montar um grande espetáculo” para julgar o antigo czar “à maneira de Luís XVI”. Orador brilhante, Trotsky “até já havia reservado um dos papéis principais, o de procurador, para si próprio”. O julgamento-espetáculo seria difundido através da rádio e dos jornais, de forma a manipular a opinião pública para que não restassem dúvidas acerca da culpabilidade do réu.
Mas a ‘linha dura’ opunha-se a esta ideia e preferia ver Nicolau morto quanto antes. Para Orlando Figes, “é provável que a ordem [para o fuzilamento] tenha partido do próprio Lenine”. Os diários de Trotsky sustentam esta versão dos factos: “Ilich [Lenine] achava que não devíamos deixar aos Brancos uma bandeira viva”.
E assim chegamos à madrugada fatídica de 17 de julho de 1918. Acordados de sobressalto por ordem de Yurovsky, o chefe da polícia política local, os hóspedes desceram para a cave da casa, sob o pretexto de estar a haver um tiroteio na cidade. Figes descreve a cena ao pormenor: “Esbarravam uns nos outros. A falta de espaço explica a confusão que se seguiu. Em voz alta, Yurovsky leu a sentença de morte da família imperial. Perplexo, Nicolau pediu que repetisse; as suas últimas palavras foram “O quê? Como?”. Seguiram-se os disparos. Yurovsky usou um [revólver] Colt para matar o último czar russo, que tombou de imediato. A ex-imperatriz também sucumbiu sem agonia. As balas ricocheteavam nas paredes, enchendo o ambiente de fumo. Passados alguns minutos de confusão infernal, o serviço parecia encerrado, mas Alexei jazia ainda com vida, numa poça de sangue. Yurovsky deu dois tiros de misericórdia na cabeça do garoto. Anastasia, dando sinais de vida, foi furada a baioneta.
Alexei tinha 13 anos e Anastasia 17. As restantes irmãs, Olga, Tatiana e Maria tinham, respetivamente, 22, 21 e 19 anos. O jornal oficial do partido, o “Izvestia”, noticiou apenas, a 19 de julho, a execução do czar. As restantes mortes foram encobertas. Mas, para Orlando Figes, “no contexto de julho de 1918 havia tantos problemas – muita violência, mortandade, guerra civil, fome – que mesmo que as pessoas soubessem que toda a família tinha sido executada penso que não teria havido muito mais reação”.
É interessante notar como o regime comunista da União Soviética tratou os cadáveres dos mortos consoante as suas conveniências. Lenine foi embalsamado como um faraó egípcio para que o corpo do grande herói da revolução permanecesse para sempre. Inversamente, os cadáveres da família Romanov foram levados para um poço e queimados com ácido, para que não subsistissem vestígios da sua passagem pela Terra. Esse procedimento alimentou as mais diversas lendas e teorias sobre a sobrevivência de um ou mais Romanov, em particular de Anastasia. Os historiadores são, contudo, categóricos nesse ponto: ninguém saiu vivo daquela cave. “Para mim essa é uma questão fechada. Só temos de pensar nisto: num espaço fechado, militares treinados – ou mesmo que fossem novatos – iam falhar a pontaria a uma distância de poucos metros? Iam enganar-se a contar os corpos que atiraram para uma pira funerária? É impossível acreditar nisso”, remata Robert Service.