Os riscos da sobranceria política


O risco da sobranceria política consiste em levar longe de mais a escalada de exigências mútuas, até a um ponto de não retorno a partir do qual acabarão por oferecer à direita, de bandeja, o regresso ao poder


A 50 anos de distância, o Maio de 1968 em França continua a ser um concentrado de História do qual podemos continuar a retirar alguns ensinamentos básicos. Desde logo, os efeitos negativos da sobranceria política, seja ela oriunda da direita ou da esquerda.

Por mais paradoxal que possa parecer, a verdade é que a França de 1968 não se portava nada mal: não tinha défice público nem dívida, havia pleno emprego, os salários aumentavam regularmente, e o país presidido por De Gaulle desempenhava um extraordinário papel a nível internacional, ousando mesmo desafiar o poderio dos EUA, que era gigantesco. Mas persistia a rigidez social dos costumes, a censura implícita à liberdade de expressão, o conservadorismo intolerável da classe dominante, a vetustez e inadaptação das estruturas do ensino, sobretudo universitário, perante o afluxo crescente de estudantes. Uma das curiosas reivindicações dos estudantes em revolta – o livre acesso dos rapazes aos dormitórios das raparigas – foi encarado com grande ligeireza pela direita e pelos comunistas, mas era um dos mais significativos sinais reveladores da crise do ensino.

Custa admiti-lo, mas é verdade: o Maio de 1968 em França foi, acima de tudo, uma revolta contra a rigidez dos costumes numa sociedade profundamente conservadora, contra a vetustez de um ensino dominado por “mandarins”, incapaz de renovar as suas estruturas e de se abrir às novas ideias e comportamentos sociais. Tudo isto acabou por se projectar em reivindicações políticas contra o poder e, finalmente, num movimento operário e social, com a ocupação de fábricas e estaleiros navais, e os sindicatos a aliarem-se aos estudantes para protestar contra a repressão. Inolvidável a presença do então radical Daniel Cohn-Bendit (!) na grande manifestação de 13 de Maio, ao lado da CGT e dos comunistas, a quem tinha chamado, pouco tempo antes, “crápulas estalinistas”. E acabou por acontecer a greve geral vitoriosa que conduziu aos famosos acordos de Grenelle, com o governo de Pompidou a ceder, nomeadamente, um aumento de 35% do salário mínimo (SMIC) e a aceitar a criação de comités de empresa. Mas os acordos de Grenelle seriam rejeitados pelos operários, sob a influência decisiva dos militantes radicais, maoistas e trotskistas, na consulta que a CGT promoveria na fábrica da Renault em Billancourt.

É a partir daqui que tudo se vai desengonçar, com a população, que até então manifestara compreensão e apoio à revolta de estudantes e operários, a mudar completamente de opinião e a responder aos apelos da direita para se pôr termo à anarquia reinante – a “chienlit”, como lhe chamou De Gaulle, o qual começou por ser favorável a uma repressão pura e dura mas acabou por ceder à direita moderada, que achava a repressão pura e dura a via directa para uma tragédia que, felizmente, não ocorreu. E se foi a sobranceria política da direita numa sociedade conservadora há muito adormecida que causou a revolta de Maio de 1968, também foi a sobranceria política da extrema–esquerda que ditou a sua derrota quando já se julgava vencedora.

De facto, como salienta Jean-François Khan – escritor e jornalista que cobriu para o “L’Express” os acontecimentos de Maio de 1968 – numa excelente entrevista à “Revue des Deux Mondes”, “os esquerdistas são sempre o melhor aliado da ordem estabelecida”. No seio da Gauche Prolétarienne, Serge July (!) e Alain Geismar já consideravam a França um país fascista e apelavam à preparação da resistência, do “maquis”, no Maciço Central do país. Sobranceria que configurava o puro delírio de maoistas de café! Os esquerdistas – gauchistes – ofereciam à direita a vitória numa “batalha” que ela já considerara perdida ao negociar e aceitar os acordos de Grenelle, além da reforma do ensino e de outras concessões significativas, concretizadas sob a égide de De Gaulle.

Não, de facto não se tratou de uma daquelas grandes revoluções que deitam abaixo um regime, nem daquelas mais pequenas que apenas derrubam o governo no poder. Antes e depois do Maio de 68 estavam exactamente os mesmos no governo, e até com mais poder e apoio na Assembleia Nacional e no Senado saídos das eleições realizadas em 1969. Essas foram as duas câmaras mais conservadoras de toda a história da República Francesa, assim se confirmando, uma vez mais, o que parece ser uma lei da História: a sobranceria política da extrema-esquerda acaba sempre por fazer o jogo da pior reacção, ou, mais simplesmente, o jogo da direita mais conservadora.

O maior espanto e indignação foi causado, nas décadas seguintes, pela transformação de vários esquerdistas do Maio de 68 – sobretudo maoistas, “pensadores profissionais e construtores de ruínas”, como lhes chamou Serge Halimi no prefácio à reedição do livro “Les chiens de garde”, de Paul Nizan – em “cães de guarda” da direita neoliberal. Em França, por esse mundo fora e, claro, também por cá, com Durão Barroso à cabeça e vários “vira-casacas” como ele.

É uma estupidez a esquerda oferecer o poder à direita por excesso de sobranceria política. Uma reflexão que deverá ser feita quer pelo PS, com uma “ala direita” por vezes muito agitada e inconformada com a “viragem à esquerda”; quer pelo PCP, que fala sempre muito para além do seu peso real e da sua percentagem de votos; quer pelo BE, em que quero continuar a confiar percebendo, no entanto, a legítima preocupação que tem de fazer “marcação cerrada” ao PCP.

Se é certo que estas esquerdas conseguiram entender-se para viabilizar um governo de verdadeira alternativa à direita, o risco da sobranceria política consiste em desfazer o muito que já conseguiram alcançar nestes últimos anos, levando longe de mais a escalada de exigências mútuas, até a um “ponto de não retorno” a partir do qual acabarão por oferecer à direita, de bandeja, o regresso ao poder.

 

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990