O evangelho segundo São Paulo e segundo São João no aeroporto

O evangelho segundo São Paulo e segundo São João no aeroporto


Paulino perdeu um voo no Aeroporto de Lisboa e ficou abespinhado. De acordo com as palavras do advogado, teve um dia “idiota em que tudo correu mal”. Ao ponto de ter injuriado agentes da PSP. Mas se o polícia Paulo ficou ofendido, o polícia João jura que não deu conta de nada    


Há duas versões sobre o que aconteceu no Aeroporto de Lisboa na manhã de 19 de junho. E como o arguido, acusado do crime de injúria agravada por ter insultado a polícia, se recusou a comparecer ao julgamento, ninguém poderá dizer, ao certo, qual dos agentes da PSP diz a verdade. Talvez as diferenças sejam só uma questão de sensibilidade. Ou de estilo, como nos Evangelhos. 

Num ponto, a história dos dois polícias bate certo: Paulino, natural de Angola, perdeu um voo para a Holanda e ficou abespinhado. “Eu diria transtornado”, começa por contar o agente Paulo à juíza, apresentando-se como “o primeiro” a abordar o suposto injuriador-em-série, depois de ter sido chamado pelos seguranças do aeroporto para se ocupar do caso de um passageiro que estaria há horas a insultar pessoas na zona do check-in. 

“Quando lá cheguei, ele estava sentado no chão junto a um painel informativo e eu perguntei se precisava de ajuda”, continua o polícia. 

“E ele, o que respondeu?”, pergunta a juíza.

“Disse-me assim: não tens nada a ver com isso, branco do caralho. E depois ainda disse mais coisas, para mim e para os reforços que entretanto chegaram. Disse-nos que éramos uns colonos, uns brancos de merda que não cumprem a lei e uns filhos da puta”. Segundo a versão de Paulo, depois de algemado, Paulino terá continuado a lengalenga, instalado no banco de trás do carro patrulha, a caminho da esquadra. “Esta merda pertence a Angola”, terá dito várias vezes aos agentes. Depois, já nas instalações da polícia, quando lhe ofereceram o que comer, ter-se-á limitado a responder:  “Não como comida de brancos”. 

O agente – que se diz “atingido na honra e dignidade profissional e pessoal” por causa dos insultos – continua a desfiar a história: “O discurso dele era profundamente irracional. De início pensei que estivesse bêbedo, mas como não cheirava, passei a suspeitar que tivesse ingerido droga, alucinógenea ou assim. Até porque, algum tempo depois, começou a chorar e a dizer que tinha pais e que os pais tinham nome de brancos. E ia adormecendo de vez em quando. Depois acordava. Parecia não ter dormido bem e tinha a boca seca”. 

Ao fim de uns minutos, a juíza despacha o primeiro polícia e manda entrar o segundo. “O senhor tinha um voo que saía por volta das 9h40 e prontos… pediu-nos ajuda, no terminal 2, quando estávamos no giro. Estava agitado e perdido por se ter apercebido que tinha perdido o avião e nós fomos com ele à área de check-in ver o que ele podia fazer em relação a isso”, começa por contar o agente João. A juíza franze o sobrolho. “Estamos a falar de uma pessoa chamada Paulino?”, pergunta, incrédula. “Sim, era esse o nome”, confirma o polícia. 

“Então… mas não notou nada de estranho no comportamento dele?”

“Foi sempre cordial, ainda que  tenha dito qualquer coisa sobre colonos, mas eu não liguei, achei que fosse do cansaço”.

“Ouça lá… mas a dada altura não pediram reforços para lidar com ele?”

“Eu aí, senhora juíza… é assim… da minha parte, relativamente ao cidadão Paulino, ele aceitou a ajuda que lhe foi dada.”

“Não assistiu a nada de anormal?”

“Não. Eu sou uma pessoa muito paciente, sabe?”

“E isso faz toda a diferença, não é, senhor agente?”

“Sim, já levo 27 anos disto.”

“Parabenizo-o por essa postura”, diz a juíza, antes de mandar o agente João embora e se preparar para ler a sentença. Antes, o procurador do Ministério Público diz ter ficado convencido de que Paulino teve uma “conduta malcriada”. E deixa uma advertência no ar: “É verdade que alguns agentes não são tão suscetíveis quanto outros, mas seja como for… é crime injuriar a polícia e, por isso, o arguido deve ser condenado”. 

Logo a seguir, o advogado de defesa informa a juíza que o arguido “manda dizer” que está bastante arrependido: “Reconhece e pede desculpa. Houve um transtorno grande por ter perdido o avião e teve de lidar com uma série de problemas com as bagagens. E devido ao cansaço, alguns recalcamentos psicológicos vieram ao de cima. Teve, simplesmente, um dia idiota em que tudo correu mal”. 

“Se o senhor agente Paulo se sentiu ofendido pelos insultos, o senhor agente João parece ter estado noutro planeta e faz uma descrição completamente diferente”, constata a juíza, num tom algo irónico, antes de condenar Paulino à pena mínima: uma multa de 100 euros.