MOSCOVO – Saio para a rua, são quatro e meia da manhã, o céu claro lá em cima, para já sem nuvens, um resto de ruído que deixo ficar para trás à medida que me afasto das portas do Bruxelles, esse bar simpático com dezenas de cervejas belgas que encontrei o ano passado, por acaso, na Rua Malaya Dimitrova. Sim, porque se a Bélgica já foi eliminada, as cervejas, não.
Um casal discute do outro lado de um retângulo relvado onde crescem arbustos. Gestos largos os dele, mais irritado, talvez ainda não tenha digerido a derrota da Rússia frente à Croácia ou, mais provavelmente, esteja mas é a sofrer as consequências de excesso de vodca na sua função hepática.
“A lua/ Tal qual a dona do bordel/ Pedia a cada estrela fria/ Um brilho de aluguel”, cantaria Elis Regina, observando a cena.
Ela de braços cruzados, num paroxismo de paciência. Ela a mulher, não a lua, que se renova e dentro de dois dias será nova. Ah! As russas são tão românticas! Mesmo quando se casam por dinheiro.
Não lhe adivinho a idade. Talvez quarenta e tal anos, trazendo às costas uma carga excessiva de relacionamentos anteriores que a faz encolher os ombros enquanto o bêbado esbravata, rompe aos saltos e aos pinotes, a música ao longe, ao longe dentro de mim: “Mas sei que uma dor assim pungente/ Não há de ser inutilmente/ A esperança…”
Vou olhando esses sinais. Eu, em relações, já fiz como Vinicius, e tirei da minha vida as guerras de palavras de forma a poder continuar a ter vivos os meus amores mortos. Não deixo mais que a tua amargura me encha as gavetas dos dias e das noites; não deixo que pouses sobre a minha escrita a teimosia das tuas mãos para sempre frias; és agora um nome, apenas uma palavra feita de ar como todas as palavras.
Alguns resistentes caminham pelo passeio, quase a meu lado. Trazem vestidas camisolas verdes da Alemanha, confesso que acho graça a uma Alemanha de verde, Alemanha, esse país no qual até as florestas são negras. Um cão dorme debaixo de um banco, acho que é a primeira vez que estou a ver um cão à solta pelas ulitsas de Moscovo, ou talvez seja o bicho de estimação do casal que discute para lá das 5,4 oitavas de extensão de voz da contralto peruana Yma Sumac.
Vendo bem, só ele é que discute e não é alto nem contralto, apenas grotesco e exasperado, sem controlo nas mãos, que parecem velas assopradas de moinhos, não consegue conter lá dentro tudo aquilo que devia ter esquecido já, voando para norte como Akka de Kebnekaise e Nills Hölgersson, sempre para norte, onde não há nem tristeza nem sofrimento.
A manhã clareia por detrás das fachadas nobres dos edifícios solenes. Na Rússia, às vezes o destino não é tão importante como o caminho. Por isso, sigo o meu e deixo para trás o homem que se arrepela até ao choro e a sua amante perdida que não sei se voltará a reencontrar, deixo para trás a mulher de braços cruzados cansada de guerras domésticas e utilitárias, deixo para trás o cão adormecido e o resto da madrugada e sigo o meu caminho em busca da verdade dos cadernos, as palavras que não digo, que não sei dizer, que nunca soube dizer, que sei apenas escrever por toda a parte onde exista uma página em branco. As palavras que vou amontoando letra a letra dentro de mim sem saber onde as despejar de vez em quando.
Quando virar a esquina que aí vem, tê-los-ei deixado assim para sempre guardados nas lembranças, o bêbado e a equilibrista de Elis Regina, os gestos de encontro ao cais dos braços que se cruzaram e não voltarão a descruzar-se nem para um abraço de adeus.
Sigo o meu caminho pensando que não faz muito sentido aquilo que dizem por aqui: que se realmente existir uma fórmula universal pela qual o homem consegue acabar com todos os seus problemas de uma só vez, essa fórmula é uma noiva russa. Dispenso. Limito-me a andar de um lado para o outro à procura de onde colocar este ponto final.