João Almeida Lopes. “O relatório sobre o Infarmed parece feito para tentar justificar o injustificável”

João Almeida Lopes. “O relatório sobre o Infarmed parece feito para tentar justificar o injustificável”


Presidente da Apifarma mostra-se preocupado com os efeitos que a transferência para o Porto pode vir a ter no investimento da indústria farmacêutica estrangeira no país


João Almeida Lopes é presidente da Apifarma, entidade que representa cerca de 120 empresas do setor farmacêutico. Em entrevista ao i a propósito da intenção do governo de transferir o Infarmed para o Porto – e depois de ser conhecido o relatório do grupo de trabalho que avaliou esse cenário -, o responsável assegura que a mudança de cidade é um erro e que pode pôr em causa a função da Autoridade Nacional do Medicamento. Sobre o relatório, diz querer justificar algo que é “injustificável”e considera o documento “tendencioso”.

 

A transferência de 70% do Infarmed para o Porto é um assunto sobre o qual nunca falou publicamente. Como vê essa intenção?

Penso que essa questão da eventual deslocalização do Infarmed para o Porto é capaz de já estar prejudicada por aquele projeto de lei que a Assembleia da República aprovou na semana passada, segundo o qual vai ser criada uma comissão que tem um prazo de um ano para avaliar os serviços públicos que devem ser descentralizados. E eu diria que, se calhar, a decisão do Infarmed deveria aí ser enquadrada. Parece-me altamente correto, muito correto mesmo, que haja de facto alguém ao mais alto nível e com a independência e garantia da Assembleia da República para avaliar a situação.

Mas insisto na pergunta: como vê a intenção do governo, uma vez que poderá vir a afetar a Apifarma?

É uma questão que nos afeta a todos enquanto portugueses e cidadãos. Na verdade, o objetivo fundamental do Infarmed é garantir a saúde pública e garantir que tudo aquilo que tem que ver com medicamentos e dispositivos médicos está de acordo com as regras, com a segurança, com a eficácia – ao fim e ao cabo, o Infarmed é talvez das instituições mais importantes do sistema de saúde português. E é por isso que vemos com alguma preocupação que, de facto, possam ser tecidos comentários que nos parecem às vezes um pouco tendenciosos e até levianos sobre como se pode deslocalizar uma entidade como o Infarmed.

Refere-se a alguém em concreto?

Sim, os comentários que têm vindo a público e até o próprio relatório. Quando olhamos para o relatório, claramente parece–nos um relatório tendencioso que foi feito para tentar justificar o injustificável, diria eu, tentar justificar uma decisão que não nos parece fazer grande sentido.

Porquê?

Em termos de indústria farmacêutica, nós, enquanto Apifarma, temos 109 sócios e 106 deles estão na área de Lisboa. Dos nossos associados, temos 15 unidades industriais e dez estão na região de Lisboa. Portanto, obviamente que uma deslocalização do Infarmed aumentaria muito significativamente os custos de contexto desta atividade económica que as empresas farmacêuticas e dispositivos médicos desenvolvem com o Ministério da Saúde, com o Infarmed, num país que de alguma maneira procura, e bem, atrair investimentos – muitas vezes estrangeiros -, que tenta diminuir significativamente os custos de contexto. Isto não nos parece fazer qualquer sentido porque, obviamente, estaríamos a agravar de modo muito significativo e dramático os custos de contexto para todos estes agentes económicos da área da saúde.

Acha que poderia até colocar-se a hipótese de algumas empresas deixarem de vir para Portugal, por exemplo?

Não, não. Seria demagógico dizer isso. Agora, seguramente, empresas que eventualmente querem aumentar o seu nível de ensaios clínicos, que pensam em investir no país, podem considerar que Portugal é uma boa plataforma para investimentos na Europa – imaginemos, por exemplo, companhias americanas ou japonesas -, claramente que isso tiraria valor àquilo que Portugal pode oferecer como uma plataforma sólida e credível e de boa base científica na Europa, porque, obviamente, os custos de contexto nesta área seriam significativamente agravados.

Acha que o grupo de trabalho que foi criado pelo ministério devia ser independente?

A criação de um grupo independente, ao fim e ao cabo, tem resposta naquele projeto da AR, não é?

Sim, mas acha que devia ter sido assim logo à partida?

Se calhar dever-se-ia ter começado por aí, e o país equacionar de uma maneira independente e correta e bem enquadrada o que faz sentido deslocalizar, o que faz sentido descentralizar, onde devem estar os serviços públicos – isso parece-me corretíssimo. O que me parece é que, ao lermos o relatório, verificamos claramente que ele parece apontar para justificar uma decisão de deslocalização, e isso não nos parece correto. Se reparar, por exemplo, há inclusivamente opiniões emitidas por serviços públicos do Ministério da Saúde que não são tidas em conta nas conclusões. Não lhe vou referir quais, mas há claramente reservas que algumas instituições do próprio ministério colocam à deslocalização, mas que são omitidas nas conclusões. 

Omissões que davam conta de riscos?

O próprio relatório enfatiza bem o grande risco que é o Infarmed deixar de funcionar como atualmente, e deixar de funcionar pode claramente pôr em causa uma peça essencial do sistema de garantia da saúde pública em Portugal. E de alguma maneira passa-se por cima desse risco, que é claramente um risco enormíssimo e que não parece fazer qualquer sentido, porque para se correr grandes riscos teria com certeza de se ter grandes mais-valias do outro lado. Efetivamente, as conclusões do relatório parecem-nos às vezes levianas e reveladoras até, nalguns casos, de uma ignorância sobre estas matérias, que são muito especificas e muito técnicas.

Como tem visto a postura do ministro ao longo deste processo?

O senhor ministro procedeu bem quando criou este grupo de trabalho, um grupo de trabalho mais independente e mais transversal à sociedade e ao pendor político. Talvez não seja o mais correto, mas acho que o senhor ministro esteve bem quando pôs este grupo a funcionar. Não me parece de todo errado.

Noventa e nove por cento dos trabalhadores são contra a transferência. Isso pode ser motivo de preocupação?

Parece-me que uma eventual decisão destas tem de ser bem pensada, bem enquadrada, e, claramente, os trabalhadores, os técnicos especializados fazem parte desse enquadramento. Quando se diz que é possível dispensar trabalhadores – os trabalhadores neste caso são essencialmente os técnicos especializados – é preciso ter cuidado, porque é muito imponderado dizer que se pode substituí-los, é leviano dizer que os vamos substituir em pouco tempo e que isso não tem encargos. Claro que tem, seria caríssimo, e obviamente que a performance da instituição ficaria em causa pelo menos durante algum tempo. E os resultados e a garantia da saúde pública que o Infarmed tem de assegurar seriam postos em causa. Contratar novos trabalhadores, refazer um quadro científico e técnico – não diria totalmente novo, mas com muita gente nova – implicaria investimentos significativos.

Que pontos do relatório lhe causaram mais indignação?

Um dos aspetos, por exemplo, é que seria necessário fazer um investimento de 17 milhões de euros num edifício. Acho que é público e notório que a saúde e o SNS em Portugal estão subfinanciados. Faz algum sentido irmos gastar 17 milhões em construção civil, num edifício seja onde for, quando, de facto, há hospitais à espera de equipamentos que já deviam ter sido substituídos há uma série de tempo? Não nos parece nada uma coisa que possa ser posta em cima da mesa com seriedade. Há com certeza imensas melhorias que o Infarmed pode ter – aliás, todas as instituições podem sempre ser melhoradas e otimizadas, como é obvio -, mas deslocalizar não é claramente necessário para isso, é preciso é efetivamente corrigir as deficiências que existem e encontrar oportunidades de melhoria. Aliás, eu poria a questão ao contrário: penso que deslocalizar iria criar claramente mais obstáculos a uma eventual otimização do Infarmed.

Há mais algum ponto que destaque?

Todos. Não ter em conta as opiniões de algumas instituições que são muito importantes, não só em termos de stakeholders, mas mesmo de instituições do Ministério da Saúde – isso é importantíssimo. Não ter em conta o lapso que podemos ter em termos temporais no funcionamento do Infarmed… é fundamental ter isso em conta. Este investimento parece obviamente inútil, sobretudo se comparado com investimentos de igual montante que fariam falta em muitíssimos estabelecimentos de saúde no país. Não estão quantificados outros aspetos, como a qualificação dos funcionários e a contratação e formação de novos funcionários. Por tudo isso digo que, de facto, há aqui uma superficialidade que é claramente penalizadora e que não aconselha a que se tomem decisões.

A Apifarma irá reagir de alguma forma se a transferência ocorrer realmente?

A Apifarma foi ouvida e obviamente fizemos sentir quer ao grupo de trabalho, quer às outras instituições do Ministério da Saúde e ao próprio Infarmed a nossa opinião sobre essa matéria, a nossa preocupação – quer em termos de saúde pública, quer em termos do funcionamento da instituição. Espero que venha a ser tida em conta.