PCP, BE e ANMP: a troika que empata a descentralização


Três meses passados sobre a assinatura desse acordo histórico entre António Costa e Rui Rio, a descentralização, perdoe-me o PAN, continua a ser um gambozino


Há fenómenos políticos em Portugal que são de dificílima compreensão. O que está a acontecer com o dossiê da descentralização é paradigmático sobre a crónica incapacidade reformista do país. Aceleramos na identificação dos problemas; abrandamos no encontro de soluções; paramos quando é tempo de fazer.

Recuperemos a história. A vontade do PS de avançar para a descentralização nem sempre foi evidente. Mas há uns anos, já primeiro-ministro, António Costa fez um discurso numa cerimónia de 5 de Outubro onde considerava a descentralização “pedra angular na reforma do Estado”. Coerente com o seu passado de presidente de câmara – com quem, aliás, na qualidade de líder da distrital do PSD, negociei a reforma administrativa de Lisboa –, António Costa sinalizava, bem, uma das prioridades da sua governação. Mais tarde, e noutras ocasiões, onde o arrastar de pés já se tornava evidente, Costa diria que “cada euro gasto pelas autarquias corresponde a três euros gastos pelo governo central” ou que “o poder local é o motor do crescimento económico e da criação de emprego”.

Do lado do PSD, com a atual liderança, e mesmo antes, no tempo em que o partido era governo liderado por Pedro Passos Coelho, a vontade de contribuir para uma verdadeira política de descentralização foi constante. Embora não encontrasse sempre eco nos socialistas, chegámos em 2018 a um ponto em que todas as vontades se alinharam no cosmos – raro momento de concórdia no sempre afiado clima político nacional. Era preciso agarrar a oportunidade.

Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa, Eduardo Cabrita (o ministro da tutela), Rui Rio, a esmagadora maioria das câmaras municipais: todos coincidiam na necessidade de fazer a reforma da descentralização.

A um ano de eleições legislativas, PSD e PS puseram-se de acordo com uma solenidade e um formalismo que não se viu na formação da frente de esquerda.

Eduardo Cabrita sublinhou que a descentralização era “decisiva para a melhoria das políticas públicas”.

E o Presidente da República, emprestando o seu peso institucional, participou em março na i Cimeira das Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto, onde sobre a matéria avisou: “O passo que for dado tem de ser irreversível. Não pode depois depender de vicissitudes conjunturais, dos governos que mudam, da situação económico-financeira.”

Porque estamos em mês de Mundial, recorro à metáfora futebolística: tínhamos tudo para fazer golo mas, de frente para a baliza e sem o guarda-redes entre os postes, rematámos para a bancada.

Podíamos ter feito tanto e ainda nem sequer fizemos o suficiente.

Três meses passados sobre a assinatura desse acordo histórico, a descentralização, perdoe-me o PAN, continua a ser um gambozino.

Já tenho idade para não acreditar em fantasias. Portanto, mantive sempre uma reserva de segurança sobre o tema.

A minha posição resume-se num dualismo: frustrado por estarmos muito longe do lugar prometido; confiante pelo avanço no sentido certo.

Mas que não haja ilusões: estamos a correr o risco de desperdiçar um consenso alargado e, porventura, irrepetível. A cada mês que passa sem políticas no terreno, o acordo perde vigor e as forças de bloqueio reforçam as pulsões centralistas.

Como é que chegámos até aqui?

Há uma absoluta minoria que impõe a sua vontade a uma maioria absoluta. Falo, claro está, do BE e do PCP. Os dois partidos, como se tem visto na encenação do Orçamento do Estado e em tantas outras matérias, têm o monopólio da chantagem política. Levam o governo para onde querem sob constante ameaça de quebra da estabilidade política. BE e PCP congelaram a reforma descentralizadora. O BE é uma inexistência autárquica. O PCP tem 24 câmaras. Nunca tão poucos prejudicaram tantos.

Para além de comunistas e bloquistas, noutro plano é evidente que há quem tenha medo que as autarquias tenham maiores graus de autonomia e de liberdade. A Associação Nacional de Municípios Portugueses devia ser a primeira e maior interessada em certificar-se de que a descentralização avança depressa. Mas não é. Prova-se, uma vez mais, que a ANMP é uma relíquia de outro tempo do municipalismo. Não reflete a realidade dinâmica do poder local do séc. xxi. Vale menos do que a soma das suas 308 partes. Pior: na defesa instintiva da sua integridade, a ANMP quer tanto ser de todos que prejudica de igual forma as autarquias nos extremos – as mais pequenas e as maiores. A par da descentralização, a reforma da organização que representa o poder local é outra das prioridades que os municípios têm de tomar em mãos.

Amanhã será tarde. Agora é o tempo de agir. Pelo povo português, pelas autarquias e, sobretudo, por uma ideia de país melhor.

 

Escreve à quarta-feira