Mundial. Nem pedindo emprestado o dragão

Mundial. Nem pedindo emprestado o dragão


Ao vencer a Inglaterra (2-1) no prolongamento, a Croácia fez história. Domingo defronta a França na final, com mais uma hora nas pernas


MOSCOVO – Subitamente, um momento único: a Croácia na final do Campenato do Mundo. De alguma forma fez-se a justiça da arte, se a justiça tem algo que ver com isto. Se houve talento no jogo de ontem, ele esteve sempre do mesmo lado. E é de talento que o futebol de hoje precisa. De hoje e de sempre.

Há mais de trinta anos a trotar pelo mundo atrás da mágica senhora das paixões, a bola, e isto só profissionalmente falando, claro está, porque todos nós temos uma bola pontapeada desde o primeiro minuto em que vemos a luz, confesso a fraqueza de sentir que os adeptos da selecção inglesa são tão absolutamente únicos que quase me dou ao luxo de lhes conhecer de cor os cânticos que fazem estremecer a estrutura de qualquer estádio, por mais moderno que ele seja, quanto mais a estrutura decrépita de um Wembley mágico, em cujas cadeiras me sentei tantas e tantas vezes, antes de o ver desaparecer com a naturalidade com que desaparecem os impérios, por exemplo, mais por dispersão do que por revolução.

A Inglaterra, mesmo que a pérfida Albion, como lhe resolvemos chamar por via de um ultimato que nos ficou preso na garganta como uma espinha de pargo, terá sempre contas a ajustar com o futebol. Pouco importa se a favor ou contra. “English/We are Proud of You!”, cantam os bretões dos topos do Estádio Luzhniki ao som dos Pet Shop Boys.

Depois de ter visto, em Sochi, a Croácia sofer a bom sofrer para aguentar os arranques finais de uma Rússia com coração até aos confins das taigas da Sibéria mas com talento reduzido a menos de um parágrafo de Gogól, fiquei convencido de que a equipa dos quadradinhos estava ao ponto de esgoelar por completo, tombando numa fraqueza física que a faria encarar problemas excessivos nesta meia final de Moscovo.

Claro que um jogo deste calibre tem sempre um toque de sensibilidade acrescida que faz com que qualquer um que se veja metido nele até às orelhas, como aconteceu com os croatas e ingleses, se esqueça de pormenores ínfimos como cãimbras e algo do género. E, assim sendo, só há que saber valorizar quem vai ao fundo da alma buscar o que ainda tem de crença.

Espelhos. Nem por acaso, no caminho para o estádio, passei pela estátua de São Jorge, o padroeiro dos ingleses, e veio-me à memória a voz do Djavan: “São Jorge, por favor/ Me empresta o dragão/Mais fácil aprender japonês em braile/Do que você decidir se dá ou não”. 

Contaram rapazes daquela ilha para lá da Mancha, onde tratam os nacos de terra molhada por “glorious mud”, o dragão pelo seu lado durante muito tempo. Ou melhor: até ao momento em que sofreram o golo do empate.
A partir de então, um jogo novo, recomeçado.

O assalto dos croatas foi forte. Modric adiantou-se no terreno e isso fez diferença. Southgate, aquele defesa central fininho que vi falhar um penalti contra a Alemanha na meia-final do Euro-96,  sentiu necessidade de mexer na equipa.

A Inglaterra treme mas não quebra. Uma voz do além: “We shall never surrender!”

Fico na expectativa: para que lado tombará a vontade desses deuses que o futebol teima em não reconhecer?

Paro o lado da Croácia, parece. Mas nunca antes do prolongamento.

Agora sim, os crotas estão na frente com o golo de Mandzukic. Transformam a sua habilidade na vantagem que parrecia ir fugir-lhes. Nada os fará, agora, falhar a final que a França lhes tirou em 1998. Mesmo que cheguem ao jogo definitivo com mais uma hora em cima dos músculos e dos tendões do que o seu adversário de domingo.