Mundial. Trabalhadores de todo o mundo uniram-se

Mundial. Trabalhadores de todo o mundo uniram-se


As grandes estrelas – Ronaldo, Messi, Neymar – apagaram-se; os reis – Brasil, Alemanha, Argentina, Espanha – caíram do alto de tronos de barro; o Mundial da Rússia tornou-se operário como poucos e aberto a novos nomes


Claro que não é caso para sair aí pelas ruas, correndo de estandarte vermelho na mão, cantando a plenos pulmões: “De pé, ó vítimas da fome!” Mas vamos e venhamos: talvez por ser na Rússia, que nestas coisas do misticismo, o futebol tem muito que se lhe diga, o Campeonato do Mundo viu-se entregue a uma espécie de proletariado, amputado das suas grandes vedetas e respetivos carnavais de foguetório, como diria o meu querido e enorme jornalista Luís Alberto Ferreira, com Ronaldo, Messi e Neymar, por exemplo, já metidos nas suas vidinhas e com os habituais monarcas – Brasil, Alemanha, Argentina (tudo por junto, nove títulos mundiais) – a fazerem companhia à real Espanha, corridos sem brilho e sem alarde, o que foi um golpe profundo na sua tão habitual empáfia.

Nas meias-finais que hoje se iniciam, em Sampetersburgo, lá junto ao Báltico, no lindíssimo Krestovski, na ilha do mesmo nome, rodeado pelo verde alarde de um parque no qual as bétulas e os loureiros sobem a vários metros de altura, França e Bélgica terçarão armas de pesos semelhantes no que respeita ao valor intrínseco da cada uma das seleções mas, a meu ver, com vantagem para os franceses.

“La France, Messieurs, ne se trompe jamais!”, gostavam os palacianos do tempo de Napoleão de dizer à tripa-forra. “Des bavards”, simplesmente. Ai não que não engana, sabemo-lo nós, portuguesinhos valentes como o Raposão do divino Eça, que a enganámos e bem, em Paris, há dois anos, na final do Campeonato da Europa do nosso contentamento. Aliás, nem Sampetersburgo é o local ideal para os franceses se porem com farroncas, não vá alguém recordar-lhes o que se passou ali bem perto, em Polotsk, em 1812.

Mas isso são outras contas, já resolvidas. Desde 1904 que França e Bélgica pedem meças, e o geral da escrituração não revela desequilíbrios por aí além, com algumas cabazadas bem aplicadas de parte a parte. Curiosamente, o último confronto oficial data de 28 de junho de 1986, quando os franceses garantiram o terceiro lugar do Mundial do México vencendo os seus opositores de hoje por 4-2.

Claro que, após ter ultrapassado o grupo com a facilidade de uma garota que anda pelo meio da gipsófila a colher margaridas e papoilas, e depois das exibições, sofridas mas grandemente espetaculares, face ao Japão e ao Brasil, a Bélgica garantiu, desde já, o reconhecimento como coqueluche deste Mundial. Chegará para eliminar uma França que aprendeu, e muito, com a embaraçosa derrota de Saint-Denis, em 2016, frente a Portugal? Pergunta traiçoeira.

 

Uma bela França!

A despeito da enorme qualidade não apenas do seu onze, mas também dos que se sentam no banco – com Hazard, destacado, à cabeça -, e da sageza de Roberto Martínez, um espanhol que escolheu para ter a seu lado, como conselheiro, nada menos que Thierry Henry, a tarefa que se ergue na frente dos belgas é tremenda. Não tenho grandes dúvidas em qualificar a França como o conjunto mais bem construído em termos coletivos, com todas as zonas do campo muito compactas e com a ajuda, aqui e ali, de um menino de 18 anos chamado Mbappé que, ao contrário de outros nomes mais sonantes, não desperdiçou este Mundial, e de um Griezmann que parece ter atingido a maturidade suficiente para não se sentir obrigado a fazer-se notar.

Fisicamente, também será uma colisão fascinante, se pensarmos na dimensão atlética de jogadores com Pogba, Matuidi, Kanté ou Giroud em choque frontal com Witsel, Kompany, De Bruyne ou Lukaku. Ouvir-se-á para lá do golfo da Finlândia o ranger dos ossos e o estalar das articulações. 

Logo à noite ficaremos a saber o nome do primeiro finalista deste Mundial, que trouxe à superfície o futebol dos trabalhadores em detrimento do futebol dos artistas. E acrescento: não perderam os espetadores muito com isso. Claro que o perfume do jogo poético é atraente como o canto das sereias que vinha de dentro das ondas, de dentro das cores e de dentro do vento, como contava Ulisses, mas há que não desprezar o fantástico jogo operário e ao mesmo tempo artístico de gente como Hazard ou Modric, duas figuras incontornáveis desta prova que varreu cedo dos seus relvados a improficuidade de alguns magos de pacotilha. Não deixaram saudades os reis dos Mundiais. Deram lugar a príncipes disponíveis para todas as batalhas.