Vem aí um calor de ananases

Vem aí um calor de ananases


A conversa sobre o tempo é parte intrínseca de ser português. Não somos únicos, há até quem o tenha transformado em arte, nós só aprimoramos o mundano “está quentinho, hoje”


Seja como desbloqueador de conversa, como método de salvação para silêncios desconfortáveis ou, simplesmente, para as trivialidades mundanas entre vizinhos e conhecidos, o estado do tempo serve como óleo nas dobradiças do quotidiano, impedindo-as de andar por aí a ranger. Fez e faz mais pela harmonia social que muitos programas públicos de inserção.

Na semana passada, uma pequena notícia da jornalista Rosa Ramos no ionline sobre a temperatura, que irá chegar a 45 graus esta semana, foi lida por mais de 80 mil pessoas, mostrando que o tema continua a ser dos mais populares. E com as alterações climáticas a tornarem mais imprevisível os nossos dias, mais notícias e conversas haverá sobre a questão.

País de agricultores transformado em nação de serviços, carregado de ditos populares sobre o sol e a chuva, perdemos na capacidade de ler as nuvens e as diferenças de luminosidade o que ganhamos na tagarelice sobre o tema: “está frio”, “está calor”, “amanhã parece que chove”, “hoje está mais fresquinho”, “amanhã diz que há vento” – as conjugações multiplicam-se sem se refinar.

Poderia julgar-se uma certa aptidão para o esmero na discussão climática, depois de séculos de prática, mas o tema é tão omnipresente como trivial. Eça de Queiroz coloca o narrador de “A Correspondência de Fradique Mendes”, depois de conhecer Fradique, a tentar esmerar-se na prosa para impressionar o dândi que tinha sido amigo de Baudelaire: “E debalde rebuscava desesperadamente uma outra frase sobre o calor, bem trabalhada, toda cintilante e nova! Nada! Só me acudiam sordidezas paralelas, em calão teimoso: ‘é de rachar!’ ‘está de ananases!’ ‘derrete os untos!’”

Talvez seja o tema que se apreste ao agrilhoamento na sua condição trivial, cumprindo a função de calafetar quotidianos sem esmerar o produto. A conversa entre dois estranhos começada pelo estado do tempo pode evoluir para outras conversas e ser até o princípio de uma bela amizade (ou de um grande amor), mas estranho será que se aprofunde à volta do tema – essa não é a sua função e um discurso sapiente em resposta ao comentário “amanhã parece que vai chover” de um desconhecido na paragem de um autocarro duplicaria o desconforto de qualquer silêncio.

A meteorologia está longe de ser exclusividade patrícia no que diz respeito a lubrificantes do bem-estar social. Os ingleses adoram falar sobre o tempo, até porque lhes permite evitar outros desbloqueadores de conversa mais pessoais que lhes trariam mais desconforto social, como a idade, a profissão ou quejandos. No Japão, país de clima imprevisível e ainda maior rigidez social, o estado do tempo é porto seguro para manter a troca de palavras entre adultos em zona confortável. Aliás, os japoneses transformaram o tema em arte poética. O haiku (ou haikai) regista em três pequenos versos e 17 sílabas a passagem das estações, como neste poema de Matsuo Bashô: “O sol de inverno/ a cavalo congela/ a minha sombra”.

Os islandeses também se habituaram ao tempo como forma de quebrar o gelo (o que, como se sabe, existe muito na Islândia). O último disco de Lovísa Elísa Sigrúnardottir, conhecida musicalmente como Lay Low, chama-se “Talking About The Weather”. Numa entrevista, a cantora e compositora islandesa garantia que os islandeses eram mais obcecados pelo tempo que os ingleses e falava na imprevisibilidade como fator marcante para colocar o assunto no centro: é preciso que o tempo passe o tempo a mudar para que seja bom tema de conversa.

Um taxista português no Alasca teria pouco sucesso a soltar a língua do seu passageiro se começasse por esse obrigatório “isto hoje está fresquinho”, pergunta/afirmação que é quase um convite de boas-vindas para o reino da tagarelice, mas que no Alasca seria como constatar o óbvio. Num lugar onde está sempre frio ou sempre calor, a monotonia do clima dá poucas variantes à conversa. No Nordeste brasileiro, ainda arriscam dizer que está frio quando estão 25 graus à noite; de resto, as alternativas pouco mais são do que um “‘tá uma quintura da mulesta” ou “um calor da gota serena” e as quatro estações são inventadas a partir do caloroso mais ou menos sufocante: verão, quentura, calor e mormaço.

Mesmo assim, não se menospreze a capacidade de um português de construir narrativas em torno do tempo, mesmo quando o clima é pouco inspirador. Se cruzar a Terra do Fogo passando no mesmo dia do sol à chuva forte, passando pelo granizo, o cinzento e depois o azul segue sendo uma das mais gratas recordações da minha existência; a falta de amplitude térmica de Luanda, em que o corpo passava dias ansiando pelo alívio fresco que as noites não traziam, pesa quase tanto no desfiar das memórias.

Embora Oscar Wilde afirmasse que “conversar sobre o tempo é o último refúgio dos desprovidos de imaginação”, o tempo é para nós, portugueses, expressão cultural, parte da identidade, algo que nos é intrínseco como o reclamar. E não se trata de incapacidade de imaginar, apenas o conviver diário com a frase de Eça de Queiroz: “Nada facilita mais uma boa civilização que um bom clima.”