A prova mais do que provada de que o arguido é um rapaz bem intencionado e que diz a verdade está, desde logo, à vista do tribunal. Jean apresenta-se à juíza com uma t-shirt vermelha com uma inscrição em letras garrafais a dizer “Kizomba Allstars Festival”. Foi esse o evento que o trouxe a Portugal, há pouco mais de duas semanas. E foi o que se passou durante o festival que o levou à prisão.
Jean, angolano com residência há sete anos em Lyon, na França, é professor de kizomba e viajou de avião até Lisboa para “fazer uns trocos” nuns workshops. Mas, ao segundo dia, tentação diabólica e a madrugada já a raiar, meteu-se num negócio inexplicável e comprou um cartão do cidadão português falso. Mas tão falso, tão falso, tão falso que antes de chegar à sala de audiências, escoltado por dois agentes da PSP e vindo diretamente dos calabouços do tribunal, a juíza não se contém e comenta com o advogado de defesa: “Até os documentos que dão aos meus filhos na Kidzania têm melhor qualidade do que esta falsificação”.
Na verdade, o documento que Jean confessa ter comprado por 300 euros “a umas pessoas que nunca tinha visto antes” apresenta vários problemas: as cores são diferentes das do cartão do cidadão português; as letras estão desfocadas; o chip está torto; os hologramas não brilham; as margens não estão direitas e o material é diferente do de qualquer cartão verdadeiro. “Até a impressão é de má qualidade”, descreve a juíza, que durante o julgamento irá proferir, vagamente aborrecida, todo um conjunto de observações negativas sobre o trabalho dos falsificadores. “Qualquer criança olha para isto e percebe que é falso”; “é uma falsificação gritante ao olho médio do homem comum”; “é uma falsificação grosseira”; “até a senhora da Portway, no aeroporto, percebeu logo que não era verdadeiro”; “até o inspetor do SEF, que só é inspetor há seis meses deu conta e a olho nu”.
Se a falsificação não é grande coisa, já as razões que levaram Jean a mostrar um “cartão de brincar” [novamente palavras da juíza] no check in do voo da Ryanar com destino a França parecem ser um insondável mistério e o professor de Kizomba está confuso: “Não sei porque fiz isto… era um documento que comprei… eu queria ter apresentado outro documento no embarque, mas enganei-me e tirei esse da carteira”.
– Porque é que não apresentou, por exemplo, o seu passaporte de Angola, que é válido?
– Eu não sei o que me deu… Isto foi… um erro. Como que um erro.
– Não terá sido porque não iria conseguir entrar no espaço Schengen com ele?, insiste a juíza.
– Não, não. Isso não.
– Mas admite que tentou usar o documento para voar?
– Sim, sim. Tentei. Não sei porquê, mas tentei.
A juíza solta um suspiro capaz de apagar três candelabros acesos a três mil pés de altitude. Consulta dois calhamaços e vê-se obrigada a recorrer ao artigo 256 do Código Penal – que é como quem diz, vê-se obrigada a absolver o arguido.
“Na verdade, aquilo que o senhor Jean fez foi uma tentativa impossível, porque jamais conseguiria ludibriar quem quer que fosse com este documento falso. Não se vislumbra, sequer, como é que esta falsificação pode pôr em causa a fé pública, mesmo tendo confessado o crime. Em momento algum o arguido conseguiria causar prejuízo ao Estado ou a quem quer que fosse. Por isso, e por a falsificação ser grosseira, é um ato que não pode ser punível, o que obriga à absolvição”, explica, vagarosamente. “Percebeu, senhor Jean? O cartão que comprou é uma má falsificação, quase como se fosse de brincar, está a perceber? Por isso, deste processo está livre. Compreende o que lhe estou a dizer?”
Jean parece algo confuso. “Vá-se lá embora, que o seu defensor explica-lhe melhor”. No corredor, o advogado esforça-se, num francês enferrujado. E informa que, apesar de ter custado 300 euros, o cartão é de tão má qualidade que nem sequer chega ao patamar de poder ser considerado uma falsificação. O professor de kizomba ouve com atenção e parece irritado. Uma falsificação grosseira não é crime e, felizmente, ter sido estúpido ao ponto de pagar por ela também não.