O Mundial da Rússia vive dias como os que cantava Adriano Correia de Oliveira sobre a Galiza: “Este parte, aquele parte/ e todos, todos se vão”.
Foram. Foram-se todos.
A partir de sábado, só cá ficaram aqueles que se quedarão até ao último dia, final e maldito jogo para o 3.o e 4.o lugares incluídos. Os ecrãs enormes do Estádio Fisht, em Sochi, lançam miríades de imagens dos momentos que não passam já de recordações fagueiras. O pontapé indomesticável de Ronaldo no terceiro golo frente à Espanha; a brandura de Griezmann, incapaz de comemorar a infelicidade do guarda-redes do Uruguai; o rapaz de tez escura e cabelos rasta que chora convulsivamente a derrota da Suécia num pranto que, para mim, é uma vitória da Suécia; Neymar rebolando pelo chão como um cachorrinho sem dono. E escuto a velha sabedoria de Nelson Rodrigues, vinda talvez do além: “Excesso de esperança. Brasileiro tem medo do óbvio. Era óbvio que venceríamos. Logo, tínhamos de perder.”
Nas bancadas, o povo canta: “Kalinka, kalinka, kalinka moiá/ v’sadu yagoda malinka, malinka moiá!” Uns pândegos. Cantam sobre zimbreiros e framboesas no momento em que a sua seleção voltou a ser o orgulho incontornável de uma nação desmesurada. Que admirável multiculturalidade é esta que consegue ter, por cima, uma definição infalível de pátria?
Uma força estranha no ar.
Uma vontade interior mas coletiva. Qualquer coisa de mais insaciável do que a sede visceral dos russos.
O selecionador Cherchesov, a quem já chamam O Che, impassível no meio da excitação histérica do público e da efervescência insubmissa dos seus jogadores.
“Rassia! Rassia! Rassia!”: sempre três vezes.
Os croatas sentem-se superiores.
Joga-se talento contra vontade, arte contra energia. Uma luta desigual: pode meter-se vontade no talento, mas não se implanta arte na energia, a menos que um tal Denis Cheryshev, nascido na Níjni Novgorod de Máximo Gorki, arranque do fundo da alma um pontapé que leve consigo um grito em estertor: “Ninguém pode nada contra Deus e Novgorod!”
Mas é também chegada a hora fatal da Rússia.
Surgiu, no início dos anos 80, um filme de Vladimir Menshov chamado “Moskva slezam ne verit” – “Moscovo Não Acredita em Lágrimas”. Que remédio tem agora senão voltar a acreditar nelas.
Hora de adeus
O penálti trágico de Rakitic fez parar o coração gigante de uma Rússia que chegara ao paroxismo da crença no golo tardio do 2-2, saído da cabeça de um Fernandes, brasileiro, depois carrasco dos seus próprios camaradas no penálti que nem na baliza acertou. Talvez houvesse, sim, aquele desígnio da vontade do qual falava o Torga. Não chegou.
A Rússia não estará em Moscovo na quarta-feira para defrontar a Inglaterra. Será a Croácia, de qualidade extrema mas que dá a sensação de estar à beira do esgotamento físico.
“Kto esni nié vi?”, perguntava em letras grossas um cartaz erguido por trás de uma das balizas. “Quem senão nós?”
Os croatas deram a resposta.
E, agora, pouco tempo resta deste tempo todo que é um Mundial, reunião única de povos e de paixões em redor da perfeição redonda de uma bola. Mundial curioso este, entregue apenas a europeus, que terá obrigatoriamente uma final inédita, que pode ter um vencedor inédito, que pode igualmente ter um vencedor que não sabe sequer o que é uma final há mais de 50 anos, como é o caso de Inglaterra.
Amanhã em Sampetersburgo, França e Bélgica num encontro de vizinhos, na expetativa de se perceber se esta Bélgica que trouxe para a Rússia mais talento até que o Brasil ultrapassará o complexo inibitivo de pequeno polegar. Quarta-feira em Moscovo, Croácia e Inglaterra, opondo duas filosofias diferentes, duas formas distantes de olhar para a forma como utilizar a bola e os espaços para ferir o adversário.
Sequem-se as lágrimas.
O circo máximo de um campeonato do mundo saúda os derrotados, mas não caminhará com eles ao colo pelas planícies da memória. Resta-nos a nós, que temos o privilégio de escrever sobre estes momentos únicos, garantir que a poesia não cantou em vão.