Japão. Os yakuza fazem contas à nova vida

Japão. Os yakuza fazem contas à nova vida


Os yakuza perdem dinheiro, homens e reconhecimento. À medida que as operações regressam ao subsolo, a violência desponta


O mundo do crime japonês obedece a dois aspetos aparentemente irreconciliáveis. O Japão é simultaneamente um dos países com maior número de organizações criminosas e gangsters no mundo e também um dos mais pacíficos. Leiam-se, por exemplo, o número de homicídios recolhido há dois anos pelas Nações Unidas. No ano de 2016 morreram assassinadas 362 pessoas no Japão. Na sua população de 128 milhões de pessoas, o número corresponde a uma irrelevante taxa de homicídio de 0,28 pessoas por cada 100 mil habitantes. Este valor não é apenas baixo: é praticamente inconcebível num país em que, nesse mesmo ano, operavam nas ruas japonesas cerca de 20 mil membros da vintena de cartéis que constituem os yakuza. No pico da máfia norte-americana, em 1960, por exemplo, as autoridades estimavam que existissem cerca de seis mil mafiosos nas ruas. Com 20 mil homens nos yakuza, o Japão teve em 2016 uma taxa de homicídio por 100 mil habitantes inferior à da minúscula Islândia, que nesse mesmo ano registou apenas um assassinato.

Esta serenidade está em causa, avisam os yakuza, porque eles próprios estão em causa. Em menos de dez anos, o número de militantes dos yakuza caiu do patamar dos 78 mil para abaixo dos 20 mil, de acordo com os valores de junho, noticiados na publicação japonesa “Spa!”. Trata-se de uma queda vertiginosa. Em 2012, por exemplo, só o grupo mais numeroso e importante dos yakuza, o Yamaguchi-gumi, dispunha cerca de 20 mil homens. E, em 1990, segundo as autoridades japonesas, a vintena de organizações criminosas oficiais – e legais – que compõem os yakuza totalizavam umas 88 mil pessoas. A situação dos cartéis criminosos japoneses é hoje tão árida que os seus militantes se vêm forçados a colaborar nas zonas urbanas com grupos de criminalidade vulgar, distantes dos seus esquemas rígidos de valores e organização interna. Os seus homens nas zonas rurais, por seu turno, andam por estes dias a roubar melancias e outros produtos agrícolas, como afirmava há dias um antigo líder yakuza a um programa da estação NHK. “Os yakuza nas zonas rurais não têm outros grupos a que possam recorrer para algum dinheiro. Claro que há grupos que sobrevivem sem vergonha, recorrendo a comportamentos extremos sem qualquer hesitação. Mesmo assim, fui apanhado de surpresa quando um membro do gangue me disse que o seu trabalho é agora assaltar terrenos agrícolas.”

O roubo das melancias em zonas rurais é apenas uma ilustração da nova fragilidade dos yakuza num país onde opera, sob uma ou outra encarnação, desde o séc. XIX, sempre em simbiose com o Estado. Na génese, por exemplo, o Estado permitia aos yakuza andarem armados sob condição de ajudarem a manter a ordem pública sempre que as autoridades imperiais escasseassem. Esta ordem fez-se sentir sobretudo depois da II Guerra Mundial, principalmente na década de 1950, ao longo da qual os yakuza contribuíram para a reconstrução do país, para a operação das fábricas e segurança pública, e estabeleceram uma ligação próxima com o funcionamento da sociedade japonesa. A vintena de cartéis dos yakuza, que funcionam como vastas organizações públicas, com negócios mais ou menos obscuros, particularmente lucrativos no ramo da construção pública, manobra todos os anos milhares de milhões de dólares. O contrato com o Estado é simples: se as autoridades não interferirem demasiado, os grupos comprometem-se a tratar-se cordialmente e a contribuir para o funcionamento do país. No desastre nuclear de Fukushima, em 2011, a maior parte dos 50 funcionários que ficaram para trás na central, sujeitando-se a grandes níveis de radiação para ajudar a conter as fugas, pertenciam aos yakuza.

O Estado japonês mudou a agulha da relação com os cartéis em 2012. Ao fim de mais de uma década de estagnação económica, as autoridades procuraram acabar com os negócios mais prósperos dos yakuza, que, no final do séc. XX, aceleraram o fim das operações mais obscuras de prostituição e tráfico de armas e drogas, por exemplo, em benefício de uma economia mais a descoberto do setor privado – lá, operam através da extorsão, chantagem e lavagem de dinheiro. Em vez de se atirar aos grandes nomes dos cartéis, as autoridades japonesas lançaram-se às empresas em negócio com os yakuza. Pelo dinheiro limpo, chegaram ao dos cartéis, que gradualmente foram perdendo receitas e margem de manobra – hoje, os yakuza procuram fontes de rendimento invulgares, como, por exemplo, o tráfico de ouro e a caça clandestina de pepinos-do-mar, cujos lucros ultrapassam agora as receitas do tráfico de metanfetaminas.

À medida que perdem dinheiro, homens, e poder, porém, os cartéis recorrem mais à violência. No últimos anos, por exemplo, registaram-se vários tiroteios em grandes obras e um conhecido empresário japonês foi abatido diante da mulher. Alguns militantes dos yakuza começaram até a mandar contra casas de empresários, tentando intimidá-los a não romper relações. Os próprios cartéis desfazem alianças antigas e pactos de não-agressão. São sinais de desespero, afirma Yukio Yamanouchi, advogado da Yamaguchi-gumi, mas também indícios do que pode estar por vir: se as operações clandestinas dos yakuza descerem demasiado ao subsolo, a violência pode despontar. “É a idade de gelo [do crime organizado]”, afirmava o advogado ao “New York Times”, em 2010. “Procuraram dinheiro na economia regular, mas isso provocou represálias”, acrescenta. “Agora, muitos preocupam-se com a sua própria refeição.”