“Amores (Im)possíveis” é um livro de 64 páginas, bastante colorido e ilustrado, onde foram compiladas máximas que Inês Meneses foi escrevendo no Facebook e que foram ganhando popularidade junto dos seus seguidores.
A editora apresenta o livro com palavras da própria autora: “O amor não costuma dar-nos grande hipótese de escolha: primeiro sorrimos, muitas vezes choramos e passado algum tempo acabamos a rir do que vivemos (se tivermos capacidade para isso). Olhar para este livro é como olhar para o registo de uma conta bancária e perceber os movimentos. Será para rir ou chorar?
Vários anos no Facebook deram estas frases que são quase minicontos. Em muitos casos conseguimos ver o romance todo. Ou o fim dele…”
Estruturalmente deparamo-nos com duas secções: “Amores Possíveis” e “Amores Impossíveis”. Na primeira secção podem-se ler preciosidades como “Ele era do tempo do Bolo-Rei e ela do Blu-Ray”. Na segunda, já num tom desencantado, quase trágico, como o nome do conjunto deixa adivinhar, podemos ler “Era dono de uma Padaria Portuguesa e um pão duro”. Na contracapa do livro temos ainda um bom exemplo do tom autoral edificado na concisão sublime da máxima “O gin tem uma paixão p’la tónica”.
O leitor não conseguirá perceber se é para rir ou chorar, pois o livro não apresenta nenhuma intenção identificável e nenhum objetivo alcançado. Quanto à definição do conteúdo, há alguma dificuldade em apelidar as frases de cada página como “minicontos”. Não há enredo, apenas trocadilhos linguísticos, por vezes bem executados, outras vezes forçados, onde se brinca com a língua e com referências ao universo da música e do cinema, ou às situações do quotidiano citadino. Também não há personagens, apenas há sombras estereotipadas ao serviço da piada. Também não há qualidade aforística, apenas um ele e uma ela e nenhuma verdade breve que possamos transpor para outras latitudes. Também não é bom livro cómico, pois se por vezes esboçamos um sorriso, noutras ocasiões (quase todas) apanhamos a autora a martelar o texto com uma referência da cultura pop só porque rima ou só porque sim, não deixando espaço à subtileza que nestas tentativas se exige. Em suma, tudo o que estes “Amores (Im)possíveis” não são dava para escrever um livro maior e melhor.
No entanto, façamos uma ressalva para o trabalho hercúleo de Tiago Galo, ilustrador da obra, e para os silvadesigners por conseguirem tornar um livro de cheques num objeto altamente propício à instagramatização e, talvez, um objeto digno de constar entre as garrafas coloridas dos novos bares do país. Sendo a Abysmo uma editora que no passado promoveu o chamado speed date com os seus autores, não é difícil imaginar um evento como um ciclo complexo, visualmente estimulante, onde Inês Meneses autografa o livro num bar lisboeta onde há à disposição do consumidor o pack livro + sacas (concebidas também pela editora) + gin.
O Contexto
Já há algum tempo que no estrangeiro este fenómeno se tornou recorrente: uma personalidade pública ou um anónimo escreve textos curtos de rápida absorção e, por via da grande popularidade que estes textinhos ganham nas redes sociais, uma editora, que vê aí uma vantajosa oportunidade de ganhar dinheiro, publica um livro e diz aos seguidores do novo peão do mundo literato “aí têm o aguardado amontoado de folhas impressas, correi”. E enquanto correm, as pessoas legitimam esta engrenagem de mercantilização.
Indo por partes, digamos que há hoje várias vias que a legitimação das massas percorre no chamado “mundo das letras”. Por vezes, elevam autores medianamente inofensivos ao estrelato súbito. Exemplo disso é a jovem espanhola Elvira Sastre que, se nos abstrairmos do facto de encher as salas que os seus mestres (segundo a própria) deixam a meio e os 105 mil seguidores no Twitter, em nada (de bom) se diferencia da poesia espanhola contemporânea. No entanto, o seu bordado poético de nó simples apela ao millennial espanhol e há uma adesão extravagante ao que vai publicando em livro ou em simples posts nas redes sociais. O que é de estranhar nestes casos é que não há aqui uma diferença vincada nas tentativas poéticas das gerações anteriores, mas apenas e só um engagement cibernético a priori que posteriormente mobiliza as pessoas para procurarem o livro.
Em outros casos, tentam convencer-nos de que o que está a ser escrito é de uma relevância paratextual. Exemplo disso é a poesia de Rupi Kaur que, sendo literariamente medíocre, é quase inatacável, pois atrás de cada livro há um milhão de leitores a defendê-la, prontos a evidenciarem que o que se trata aqui não é de literatura ou de arte, mas sim de dar às jovens mulheres reprimidas por esta sociedade misógina e geograficamente desigual uma voz e a merecida atenção. Temos então aqui uma nova simbiose difícil de desmantelar: popularidade-assunto subentendido.
Percebamos que, nestes dois exemplos, a popularidade das redes sociais liga-se, ao contrário do livro de Inês Meneses, a propósitos e ferramentas que merecem a nossa reflexão: novos meios de fidelização de leitores; a importância de um grupo identitário bastante demarcado ter espaço para falar dos seus temas.
Mas então o que justifica esta crítica e estes minutos roubados ao leitor?
Se a objetos como este livrinho de Inês Meneses respondermos sempre com o nosso silêncio, acabamos por assistir ao alastrar deste contágio de publicações sem sentido que tem como resultado máximo a estupidificação do leitor e a diluição de todo o texto escrito, correndo nós o risco de sermos obrigados pela multidão a dizer (em jeito de sketch) que a frase escrita na porta da casa de banho do bar tem o mesmo valor que os sonetos do Antero ou que o Raul Minh’alma é a nossa Maria Velho da Costa da era digital. Em suma, no meio da falta de sentido é preciso dizer: por aí, não vou.
Mais uma Volta
Em jeito bernhardiano, repetimo-nos na busca do espírito e motivo da obra. Este livro de Inês Meneses só é possível devido à sua popularidade enquanto radialista e enquanto figura pública nas redes sociais (e juntamos assim a lógica deste livro à do “Resumo de 2017 para Todos” de Miguel Somsen e Hugo van der Ding, que, partindo da popularidade dos seus autores e de textos do Facebook, é ainda assim mais oportuno que este).
Com um grande e variado alcance de pessoas ao seu dispor, Inês Meneses não continua uma tradição literária, não reivindica uma nova forma de comunicar, não expõe assuntos tabu ou de difícil descrição. E também por isso somos obrigados a pensar que Inês Meneses nos brinda com os seus “Amores (Im)possíveis” por um impulso narcisista ou de natureza financeira.
Outra tarefa que caberá a cada leitor que conheça o catálogo da Abysmo é a de refletir o que é esta peça disforme e o que significa para a identidade editorial de um projeto que, tendo-se apresentado bastante desigual nas suas apostas, nunca largou as rédeas da ambição de publicar livros relevantes.
Conclusão (ou a ditadura do coração)
Quando trocava impressões sobre este texto com um amigo, este trouxe-me uma imagem há muito esquecida: a ditadura do coração que é praticada no reino do kitsch, como explica Milan Kundera n’“A Insustentável Leveza do Ser”. Talvez estejamos perante o pináculo dessa lógica em que, como sabemos, só a sensibilidade de cada um interessa e a razão já não tem lugar para levantar objeções nesta fraternidade onde todos aceitam tudo o que se lhes apresenta, em nome de uma camaradagem inerte e sem capacidade de mapeamento da realidade.
Ultrapassamos assim em larga medida os chavões do final do século passado, porque já nem só de aproveitamento da alienação das massas estamos a falar. Os agentes artísticos e culturais que culminam hoje na elaboração estratégica de campanhas de marketing e legitimação (formal e institucional ou informal e popular) chegam à massa consumidora sem a necessidade de um plano prévio ou de algo a ser alcançado: um prémio, uma referência no jornal, uma troca de impressões entre dois leitores. O marketing é a própria pessoa e a sua biografia, que foi erguida pelo seu ofício e pela sua pose nas áreas de entretenimento.
É também por isso que acabamos este texto sem estarmos especialmente desesperançados. Quem aderir a esta jogada abysmal (e aqui relembramos que a frase icónica de Teixeira de Pascoaes continua na última folha do livro como um frame absurdo num filme onde o realizador tivesse adormecido por cinco minutos) não sofreu, de todo, a habitual compressão de perspetivas que ao livro estão normalmente subjacentes e que tentam, quase sempre, alcançar a homogeneização das ideias e das edições. Quem compactuar com esta ideia já terá o seu sentido crítico arrasado e, sobre isso, a cada um caberá mapear e nomear os responsáveis que encomendaram o serviço aos bulldozers.