O escritor espanhol Ramón Pérez de Ayala, autor do ensaio “Política y toros”, disse certa vez: “Se eu fosse ditador em Espanha, proibiria as corridas de touros; como não sou, não falho uma”. Os tempos são outros, e as vontades mandam que se proíba tudo tão cedo quanto ofenda o número cada vez maior das pessoas sensíveis, aquelas que no poema de Sophia eram incapazes de matar galinhas, mas que não iam tão fundo nas suas convicções que não as comessem.
E deixe-se aqui um parêntesis quanto à conversa de que matar para comer não é o mesmo que matar por entretenimento. O jornalista inglês Alexander Fiske-Harrison, que passou dois anos em Espanha a estudar o fenómeno para escrever “Into The Arena: The World of the Spanish Bullfight”, lembrou que a principal razão pela qual hoje comemos carne é porque gostamos do sabor. Ou seja, para entreter o nosso palato. De pouco valerá também argumentar que o touro é um animal privilegiado, alvo de mordomias ao longo de cinco anos (até atingir a maturidade), de um nível de cuidados com os quais as vacas indianas nem sonham. Isto porque, no fim, tudo vertigina naqueles tenebrosos 25 minutos na arena. A questão é que, mesmo pintando um quadro bem grotesco, dando trela à percepção do leigo de que as corridas assentam sobre uma forma de tortura animal, e tudo para saciar a sede de sangue do seu público, o bom senso desse mesmo leigo deve ser o bastante para que perceba que o touro – raça que só existe em honra do seu fatal destino – se safa bem melhor do que a prima, a vaca, que tem o seu destino a desembocar num grande M amarelo (Hã? Burguer). E que, enquanto não se arranja um substituto sintético, vive 18 meses encurralada, a engordar em tempo recorde e à base de ração para depois receber a tal morte “humana”.
É evidente, no entanto, que as opiniões sobre a tourada divergem hoje a tal ponto que todos os argumentos se tornam fúteis, um carnaval exterior sem dobragem de lado a lado. A razão é, por isso mesmo, o que menos importa. Mas se o que se pretende é compreender a paixão pela tourada, há uma tão ancestral quanto fascinante tradição que merece ser estudada. De resto, como nota Fiske-Harrison, em Espanha, a tourada é tema das páginas de cultura dos jornais, não figura nas do desporto. E este texto dirige-se àqueles que reservam em si algum rincão onde se deixam encantar pelo obscuro. Essa margem para ir além da estupefacção, do horror primário que é, tantas vezes, a base sobre a qual se sustenta todo o raciocínio dos Indignados da Silva, que se julgam progressistas, servindo-se de altas doses de ignorância e presunção, passando por cima de todo o mistério, e usando a sensibilidade como grande compasso moral, capaz de formar juízos instantâneos sobre o certo e o errado, para depois ditar os limites da decência.
Nos dois anos que passou em Espanha, Fiske-Harrison não se limitou a assistir às corridas das bancadas. Convivendo de perto com os matadores, tornando-se amigo de Juan José Padilla e de Cayetano Rivera Ordóñez (neto do grande matador Antonio Ordóñez, um dos protagonistas de “O Versão Perigoso”, o último livro escrito por Hemingway), o jornalista foi encorajado a passar por esse rito de iniciação que é a lide.
Num mundo onde a valentia é dispensada, e toda a aventura foi desviada para formas de empreendedorismo, esse é um traço que persiste na tourada, e que Mario Vargas Llosa assinalou numa entrevista ao “LA Review of Books”: “Parece-me que se pode associar a corrida a rituais ancestrais em que os jovens eram obrigados a participar de forma a serem reconhecidos como homens – tinham de arriscar alguma coisa. E o touro, particularmente na Europa, no mundo ocidental, era o símbolo da força, da violência. (…) É por isso que há tantos mitos em que o touro surge como representação de uma força primitiva, selvagem, que se opõem à astúcia humana. É este contraste que se mantém vivo ainda hoje na corrida”.
Aquele jornalista deixou-se, portanto, convencer de que só poderia realmente entrar naquele mundo, transcender o simples fascínio pela beleza artística do toureio se, em vez de ficar a assistir, saboreasse a tensão na arena, e se mostrasse capaz de sacudir o medo, escapando por um triz a um golpe possivelmente fatal. O célebre matador espanhol Ignacio Sánchez Mejías, aquele a quem foram dirigidas as insuperáveis elegias dos poetas da grande geração espanhola de 1927, depois de este ter encontrado a morte na arena, em 1934, também ele insistiu e acabou por convencer o poeta Rafael Alberti a fazer com ele o “paseílo” na praça de Pontevedra, integrando a sua quadrilha. Assistindo à lide dentro da trincheira, Alberti compreendeu a “astronómica distância que medeia entre um homem sentado em frente de um soneto, e outro de pé, de corpo oferecido, sob o sol, diante desse mar, cego raio sem limite, que é um touro recém-saído do curro”.
Num magnífico ensaio publicado, em 1991, na Colóquio Letras, e que analisa a “loucura infinita” de Ignacio, o poeta António Osório lembra que todos os grandes matadores são descendentes quixotescos. “Ignacio intuiu algo de incontestável. Há qualquer coisa de interminavelmente quixotesco na aventura do matador: chamemos-lhe uma descomunal valentia, uma desvairada temeridade, a exibição de um risco desmedido, uma extravagante loucura”. O matador cuja valentia Lorca imortalizou nos quatro poemas de “Llanto por Ignacio Sánchez Mejías” – “Como un río de leones/ su maravillosa fuerza,/ y como un torso de mármol su dibujada prudencia./ Aire de Roma andaluza/ le doraba la cabeza/ donde su risa era un nardo/ de sal y de inteligencia” –, tinha em D. Quixote o seu herói, aquele que fizera toda a sua fortuna toureando, “lidando o perigo, a morte, o Nada”.
Servindo-se da insuperável lenda cervantina para traçar uma linha de demarcação decisiva entre os homens, aquele matador diz-nos que Quixote triunfa “apesar do seu ‘inimigo’ Sancho, “o maior inimigo da tauromaquia”, porque “as cornadas no ventre são mortais”, e Sancho “não quer morrer”. Ora, para o quixotesco Ignacio, o touro encarnava a morte e o demónio. Osório sublinha que o matador repetia à saciedade esta noção, e como herdeiro de Quixote, o que queria era “matar a morte e o demónio”. Para ele “o toureio não é uma crueldade, mas um milagre. É a representação dramática do triunfo da Vida sobre a Morte… É o povo que quer ser toureiro porque quer viver, é ele que quer tourear porque quer fazer milagres”.
A oposição que se pode fazer entre este “povo” que se deixa embalar na loucura quixotesca e aquele que hoje pretende pôr fim às touradas, e isto sempre em nome de poupar os touros ao sofrimento, esse povo que se coloca sempre do lado da sanidade, da virtude, é cada vez mais esse mesmo povo que tem um tal pavor diante da morte, um medo exasperado, um terror que se recusa a confrontá-la e, por isso, a nega, lhe vira as costas, não quer ter nada a ver com ela. A abjecção pela tourada provém de uma turba que rejeita toda a obscuridade, que pretende expurgar a humanidade de todos os resquícios de todos os vícios, que aspira à imortalidade, mas não reza aos deuses, e, sim, à ciência. Quer acabar com o delírio, e pretende higienizar também as crenças, as ficções delirantes com que o homem ao longo de séculos tacteava na escuridão, estudando “astros desmoronados, manciais, o segredo”.
Não há margem a contemplações da parte deste povo que se pretende livre de toda a superstição, da forma como o espírito se satisfaz a partir de intuições que, não devendo grande coisa à razão, devem muitíssima à lírica. Por isso, no seu âmago, todas as religiões estão fundadas sobre alguma poética deslumbrante. Mas a arrogância própria desta época não se deixa afectar pela feérica encenação das touradas. O sangue provoca-lhe suores frios, o sofrimento leva-a- inevitavelmente a sentir-se na presença da morte.
Nos nossos dias, um matador da estirpe de Ignacio, este mago que pisava terrenos de “incrível perigo”, seria o equivalente a uma bruxa nos tempos da Inquisição. Na cara do público a sua “faena temerária” deixava uma provocante “sensação de desdém”. Mas se levava os aficionados a reagir violentamente, conseguia reconciliar-se com eles, pois, como o escritor José María de Cossío confessou: “Vê-lo tourear, e não encontro expressão mais precisa, metia medo”.
Hoje, o público não suporta o medo. Esta “apetência de morte”, o gosto que ela deixa na boca, causa-lhe calafrios. E não é a tourada a perfeita representação trágica da vida? Não mais vulgar, nem grotesca ou violenta que ela, e, no final, com tão bom gosto como a morte. Porque se é uma arte decadente em todos os aspectos, o seu aficionado sabe que como a vida tem um sabor mais forte quanto mais longe se deixa levar pela aventura com a morte. Para Ignacio o toureio era uma das formas dessas aventura, uma “ciência da vida”. E porquê? “O touro é o perigo, a morte que nos rodeia por todos os lados, que nos espreita ou que nos vem ao encontro. O toureiro é o que enfrenta o perigo, o que engana a morte lidando com ela, o que cria regras, uma arte para não morrer.”