O brasileiro Nelson Motta é um daqueles homens que faz tudo ao mesmo tempo e eu invejo-o por não ter a mínima ideia de como consegue que os seus dias tenham, pelo menos, mais 48 horas do que os meus. Jornalista, escritor, roteirista, produtor musical, dramaturgo e letrista, participante do movimento da bossa nova, idealizou e formatou documentários sobre Chico Buarque e Caetano Veloso, é autor de mais de 300 canções, participou no programa “Manhattan Connection” (um êxito lunar!), amante mais ou menos comedido de metade das mulheres famosas do Rio de Janeiro e apaixonado por futebol. Enfim, um daqueles tipos raros que, se telefonar para algum de nós, vale a pena atender na hora.
Pois bem, Nelson Motta também publicou um livro sobre esse jogo fascinante inventado pelos ingleses, “Resenha Esportiva – Dramas, Comédias e Tragédias de Sete Copas do Mundo”, título que revela ser ligeiramente mais velho do que eu, mas não muito, pois vou bem adiantado nesse caminho. Falo do livro para dizer que, se puderem, o leiam. E para cometer o pequenino deslize de lhe roubar uma frase que tem que se lhe diga: “Um Campeonato do Mundo é como repartir uma laranja ao contrário. Começamos com 32 pedaços, chegamos a 16, depois serão oito, depois quatro, depois dois e, no fim, teremos uma laranja inteira.”
Também foi Nelson Motta que disse que o nosso primeiro Mundial é como o nosso primeiro sutiã, algo que não vou comentar porque cada um usa o que lhe dá na gana como roupa interior e nem me atreveria aqui a pôr em causa as esquisitices licenciosas de Nelsinho (para os amigos). A menos que esteja a interpretar mal a frase, algo absolutamente ingénito se vos disser que escrevo pelas sete e meia da manhã de Sochi, isto é, umas bem medidas cinco e meia em Portugal continental.
Deixemos os pequenos vícios de Nelson Motta.
Porque, entre hoje e amanhã, em Níjni Novgorod e em Kazan, em Samara e aqui mesmo, em Sochi, os pedaços da laranja ficarão, de repente, reduzidos a quatro, o que quer dizer que estamos à beirinha de ficar com a laranja inteira.
Nada de queixas É um facto que este curiosíssimo campeonato do mundo, disputado na imensidão de quase todas as Rússias, já viu partir, de monco caído e até, num caso ou outro, no meio de uns sorrisinhos de escárnio que arrebitaram os cantos da boca dos que foram ficando, gente fina que não tem por hábito regressar a penates mal os Mundiais começam. Alemanha, Argentina, Espanha saíram pela porta do cavalo, ainda que a Espanha só depois de se ter sujeitado a uma lotaria de penáltis que foi bem mais uma lutaria de penáltis.
De Portugal, o costume: promessas por cumprir.
E assim, pelas calhas da roda de uma competição que, não tendo chegado à prateleira mais alta da qualidade do futebol, tem apresentado vários jogos do quilé, como dizia o meu amigo Assis Pacheco, vemo-nos já hoje com um Uruguai-França e um Brasil-Bélgica que, convenhamos, não são nada de se deitar fora. Vencedora clara da Argentina, a França está agora, e depois de um início muito tem-te-não-caias, na linha da frente dos favoritos, ainda à espreita para perceber se o satânico Cavani entra ou não no relvado. Por seu lado, o Brasil, filho dileto das histórias mundialistas, defronta um bico-de-obra chamado Bélgica, seleção que tem seguramente um grupo de individualidades das melhores que se podem encontrar na Rússia neste início manhoso de julho, que trouxe consigo uma chuvinha azucrinante de fazer comichões no sangue.
Seguem-se, amanhã, o Suécia-Inglaterra e o Rússia-Croácia, decididamente com menos peso no cartaz de quem vê o futebol pelo prisma secular dos nomes.
Para os russos, exultantes como andam, convictos de que o seu campeonato do mundo pode ser mesmo o mais marcante da sua longa história, mais sofrimento ou menos sofrimento de prolongamentos e de penáltis, à maneira do Portugal do último Europeu, Sochi tem-se transformado num local de peregrinação. Não faltará quem acenda velas a São Basílio e esgote os estoques de vodca. As massas saíram à rua e serão o estopim de uma noite que se arrisca a ser infinita. Cantando até à rouquidão a sólida união dos povos irmãos: “Com a sabedoria ancestral do povo!/ À glória Pátria, de ti nos orgulhamos!”
“Rassia! Rassia! Rassia!”