É, invariavelmente, uma tradição portuguesa, à qual ninguém fica indiferente sempre que é motivo de discussão. Hoje, contudo, os contornos do debate ficam mais sérios: a tourada – neste caso, a sua abolição – é levada pelo Pessoas, Animais, Natureza (PAN) à Assembleia da República para ser votada pelos deputados. Também o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Ecologista Os Verdes (PEV) dão o seu contributo à querela, de forma mais moderada: o primeiro, leva ao Parlamento restrições à tauromaquia e o segundo apresenta um projeto de lei em que pede o fim do financiamento público à atividade. As atenções estão voltadas, em especial, para a iniciativa mais radical, que pede a abolição – e se entre as associações defensoras dos direitos dos animais se aplaude a proposta, a premissa de que não existe apoio parlamentar suficiente para fazer passar esse projeto de lei é, ao mesmo tempo, transversalmente reconhecida.
“Vamos ser muito honestos: obviamente que compreendemos que é uma promessa eleitoral que o partido tem de cumprir e que é muito importante, claro, mas sabemos perfeitamente que não há maioria parlamentar para aprovar um projeto destes neste momento”, admite ao i Rita Silva, a presidente da Animal, organização não-governamental portuguesa de defesa dos direitos dos animais. Para a responsável – que garante que vai marcar presença hoje na Assembleia, “como de costume” –, importa destacar o simbolismo de que este dia se reveste. “É mais um passo dado” em direção ao objetivo final. Até porque, assinala Rita Silva, “hoje não há maioria parlamentar, mas no futuro não quer dizer que não haja”.
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Para a presidente da Animal, cada vez mais portugueses querem o fim da tauromaquia. “Neste momento já não é sequer socialmente aceitável as pessoas dizerem que gostam de touradas ou que são aficionados. À medida que o tempo vai passando vamos evoluindo e vamos tendo noções éticas mais fortes”, acredita.
Essa é também a argumentação da presidente da Liga Portuguesa dos Direitos do Animal (LPDA), Maria do Céu Sampaio. “As tradições não têm de se perpetuar no tempo, porque se não, não tinha havido a evolução que o homem teve ao longo da história, não havia a emancipação da mulher… e é neste contexto que eu acredito que, mesmo não sendo agora, com o tempo as touradas vão ficar na história da humanidade como um marco de algo que aconteceu”, defende. Maria do Céu Sampaio admite, até, a criação de “um museu de tauromaquia, porque a história do homem não é para apagar”. E admite, também, “que numa determinada época as touradas tivessem uma justificação”.
Ainda que não acredite que seja aprovada, a presidente da LPDA reconhece valor à iniciativa do PAN. “Não faz sentido que, no século XXI, ainda exista tortura de animais – bois e cavalos, neste caso. Temos de evoluir no sentido de acabar com uma tradição que já há muitos anos devia ter acabado”, diz, acrescentando: “Não tenho dúvida nenhuma de que já há muito tempo que a maioria dos portugueses quer o fim das touradas”.
Para Maria do Céu Sampaio, as touradas só continuam a existir por causa “dos cifrões”: “Se as touradas não dessem dinheiro aos ‘ganadeiros’ [criadores], não tenho dúvida nenhuma de que já tinham acabado há muito tempo”.
A organização Portugal Sem Touradas vai mais longe e ao i considera mesmo que a discussão levada ao Parlamento esta sexta-feira é “salutar e pertinente, enquadrada nos valores de uma nação que se afirma moderna e civilizada, e nos valores de um povo que crescentemente contesta os maus-tratos e repudia a violência contra os animais”. E essa crescente contestação contra os maus tratos, defende Nuno Alvim, representante da organização, é evidenciada pelos sucessivos diplomas que, nos últimos meses, têm assegurado cada vez mais direitos aos animais.
Sobre a vontade dos portugueses, o representante da organização Portugal Sem Touradas defende que “um número crescente de portugueses contesta as touradas” e exemplifica com um caso que considera representativo: a petição “Pela abolição das touradas e de todos os espetáculos com touros”, criada na plataforma Petição Pública, que reuniu mais de 68 mil assinaturas.
Alvo: dinheiros públicos À falta da maioria parlamentar necessária, a Animal defende que “onde se deve insistir para o fim da tauromaquia é na questão dos dinheiros públicos. Esse para nós é o pilar que deve ser a prioridade para se conseguir alcançar a abolição. Estrategicamente, é sem dúvida o que vai levar ao fim da tauromaquia” – visão que, de resto, vai ao encontro daquela que é partilhada no projeto de lei do partido Os Verdes.
Ao i, Rita Silva lembra que a Animal “tem uma iniciativa legislativa de cidadãos (ILC)”, criada no âmbito da campanha Enterrar Touradas, que pede não o fim das touradas, mas o fim da atribuição de dinheiros públicos a essa atividade. Conta, neste momento, com 12726 assinaturas. “Acreditamos que os apoios públicos são o pilar que ainda mantém esta atividade de pé, e defendemos que, dado que esta ainda é legal e a querem assim tanto, então que experimentem mantê-la apenas com o apoio do público que vai aos espetáculos (e que é cada vez menos, tal como nos mostram os relatórios anuais da IGAC)”, lê-se no texto que explica a iniciativa da campanha. “Continuamos a recolher assinaturas precisamente para essa ILC”, acrescenta Rita Silva.
A Animal diz estar especialmente empenhada nesta questão e tem estado a reunir as somas de financiamento públicos atribuídas pelas câmaras de norte a sul do país. “Ao contrário daquilo que a federação [portuguesa de tauromaquia] diz, ao valores não são de todo irrisórios”, refere ao i Rita Silva. O documento está disponível no site da Animal e totaliza já 45 páginas, estando “constantemente a ser atualizado”. “Era importante ver como se aguentavam sem esse dinheiro, e nós sabemos bem que não seria possível”, conclui.