Vestir os selvagens. Breve análise da cartografia das Américas

Vestir os selvagens. Breve análise da cartografia das Américas


Nos anos que se seguiram à chegada de Colombo ao território que hoje conhecemos como América, diversos cartógrafos e cosmógrafos exploraram, a partir da costa caribenha, o norte e sul do continente. Esta informação, guardada durante anos em segredos imperiais, culminou no primeiro atlas moderno, “Theatrum Orbis Terrarum”


Certa passagem de certa peça de um certo dramaturgo inglês de seu nome William Shakespeare afirma que “o mundo inteiro é um palco”. As mulheres e os homens que o povoam, meros artistas que entram e saem de cena. Naqueles longínquos séculos xvi e xvii, a ideia do mundo como um teatro ia para além das artes, era um estado de espírito nas sociedades europeias. Foi também o nome que o cartógrafo holandês Abraham Ortelius decidiu dar à sua coletânea de mapas do globo, “Theatrum Orbis Terrarum”.

No mês passado cumpriram-se 448 anos da edição daquele que é considerado o primeiro atlas moderno da nossa história. Embora nenhum dos 53 mapas da publicação sejam da autoria de Abraham Ortelius, coube-lhe a ele o papel de os revisitar e organizar numa ordem lógica. Até ao lançamento de “Theatrum”, os mapas eram impressos e vendidos em separado, seguindo grafismos diversos. O atlas de Ortelius conseguiu aliar à cartografia mais avançada o poder das novas tecnologias de imprensa, aumentando a capacidade comercial da sua publicação para responder à procura de um mercado cada vez mais ligado, onde os interesses imperiais, religiosos, militares e também geográficos surgiam enlaçados. O sucesso de “Theatrum” vê-se nos números: nos 40 anos que se seguiram à primeira publicação, 32 novas edições foram feitas em mais de sete línguas – algumas revistas pelo próprio Ortelius, outras surgindo como versões clandestinas não autorizadas, feitas por editores que as vendiam a um preço significativamente mais baixo do que a luxuosa edição original.

O primeiro mapa desta coleção revelava uma das grandes novidades do século, uma representação detalhada do continente americano, de norte a sul. A imagem de duas páginas do “Novo Mundo” é precedida por um texto que esclarece a importância e conta a história deste território. Já o mapa, atravessado pela projeção de Mercator, figura copiosamente anotado, com os nomes das regiões, aldeias, rios e montanhas. Os dois principais reinos hispânicos figuram já com os seus nomes: no norte, a Nova Hispânia; no sul, o Peru. Nomes como Mechuacan, Xalisco ou Amazones, designações de origem indígena, surgem revistos pelo filtro linguístico do latim. Outros, contudo, mostram a imposição de categorias europeias, como é o caso da ilha de Porto Rico, onde se lê: “Borinquen, agora San Juan.” De facto, a prática de renomear cidades e regiões de origem nativa por uma nomenclatura cristã fora um hábito já posto em prática pelo próprio Colombo e que em pouco mais de 50 anos reconfigurara por completo a perceção do continente americano.

Mas é na capa do “Theatrum Orbis Terrarum” que as novas idiossincrasias europeias face às Américas tomam a sua forma mais palpável: uma ilustração que utiliza representações alegóricas dos continentes, representados de forma hierárquica por figuras femininas. No topo de uma estrutura arquitetónica clássica surge, sentada no seu trono, a coroada Europa, segurando o cetro real numa mão e na outra uma representação do mundo, atravessado por um crucifixo. Por baixo dela, de cada lado das colunas da estrutura, outros continentes apresentam-lhe as suas oferendas. À nossa esquerda, uma Ásia elegante, vestida de seda, ergue um incensário por onde sai fumo aromático. À direita, África, parcialmente despida, exibe uma coroa dos raios intensos do seu sol e segura um humilde ramalhete. Ao fundo, por baixo de tudo e todos, jaz a América, nua e sem nada para oferecer a não ser uma cabeça decapitada. Acompanhada por um arco e flechas, é a mais bárbara das quatro, e tudo o que a acompanha parece apontar para esses sinais de barbárie (o corpo despido, as armas, a cabeça decapitada). Ao seu lado, um busto em chamas indica a possibilidade de um quinto continente, ainda por descobrir. O atlas é dedicado ao rei Filipe ii de Espanha (que pouco mais de uma década depois viria ser também Filipe i de Portugal). O papel fundamental do vasto reino de Espanha na hora de civilizar os povos selvagens do Novo Mundo é mencionado no texto introdutório do mapa, justificando assim a expansão imperial.

Não sendo esta ilustração um arquétipo para o modo como os reinos do continente europeu observariam os povos de outros continentes, dada a difusão da obra de Ortelius, é seguro afirmar que representa as ideias que já se tinham sobre estes. A imagem que muitas vezes é vendida das explorações marítimas alicerçadas no princípio de uma panaceia intercultural moderna não se sustém quando se estudam um pouco mais a fundo os documentos dessa mesma época. Uma invasão não ocorre por acaso. 

No palco do mundo, o ator europeu distrai-se com o brilho do ouro alheio – uma distração que dura séculos e atravessa classes, indo dos monarcas falidos de antanho às megacorporações do nosso século. Já Abraham Ortelius intuía aquela que viria a ser a futura relação entre a Europa e as Américas, vaticinando-a no texto que acompanha este mapa do “Novo Mundo”:

“A totalidade deste hemisfério (que é agora chamado América e, devido ao seu tamanho, o Novo Mundo) permaneceu em segredo dos nossos antepassados até ao ano da Graça de 1492, quando Cristóvão Colombo de Génova o descobriu, um acontecimento que parece ultrapassar qualquer medida do assombro humano. Se considerarmos, por um lado, a diligência de antigos cartógrafos e as cómodas oportunidades que os impérios procuram em novas regiões e, por outro, a insaciável avareza do ser humano, traçando tudo a fim de encontrar ouro e prata, que nestas regiões é incrivelmente abundante, pergunto-me como pode ter sido possível este território ter permanecido desconhecido por tanto tempo.”