Os russos contam as horas, os minutos e os segundos, nesta cidade marítima onde há dois dias ameaça chover sem que a água caia do céu plúmbeo. Para muitos deles, no sábado, dia 7 de julho, pelas 21 horas de Moscovo, jogar-se-á o encontro mais importante da história do futebol da Rússia. Exagero homérico!, gritarão alguns, recordados da meia-final do Campeonato do Mundo de Inglaterra, em 1966, até hoje a presença mais destacada neste rol de Mundiais que já vai na sua 23.a edição, benza-as Deus, nada que possa encher de orgulho pátrio transbordante aqueles que cantam em coro no seu hino: “As vastas amplidões dos sonhos da vida/ Os anos vindouros nos abrem/ A dedicação à Pátria dá-nos força/ Assim foi, assim é e assim sempre será!”
Os russos estão atolados em euforia. Não criam no êxito da sua seleção ou talvez tivessem medo de crer. Ou melhor: criam não querendo. Este Mundial caseiro parecia trazer consigo a profecia eterna de Svidrigailov, no “Crime e Castigo” de Dostoievski: “Na pátria é melhor! Aqui podemos acusar os outros de tudo e justificarmo-nos a nós próprios…”
É tempo de júbilo, de exaltação, tal é a confiança em que, depois de amanhã, a Croácia ficará pelo caminho e a Rússia atingirá, pela segunda vez, uma meia-final de um Mundial, desta vez representando os velhos povos rus, que lhe deram o nome, e não camuflada sob a sigla de CCCP. Mas, porque o revisionismo não caberá nunca nem no que penso nem no que escrevo, há que recordar que foi sob a nomenclatura de União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, tendo no seu seio jogadores de países hoje em dia livres e independentes (sobretudo ucranianos, mas também arménios, georgianos ou bielorrussos), que a Rússia atingiu o topo da sua qualidade como intérprete do jogo. Principalmente no cruzar das décadas de 1950 para 1960.
Campeões da Europa
1956 marca o primeiro grande momento do futebol soviético, com a conquista do Torneio Olímpico de Futebol, na Austrália, prova tão profundamente marcada pelos boicotes e desistências que até a Índia conseguiu chegar ao quarto lugar.
Eram tempos em que os países de Leste, com o seu profissionalismo encapotado, dominavam o futebol olímpico tendo amadores como adversários. Não era de estranhar que União Soviética e Bulgária disputassem a final de Melbourne, ganha pelos soviéticos no prolongamento (2-1) à custa de jogadores como Lev Yashin, Igor Netto, Valentin Ivanov, Eduard Streltsov ou Sergei Salnikov.
Quatro anos mais tarde, em Paris, a honra suprema de se terem tornado a primeira seleção a vencer a Taça da Europa das Nações, hoje em dia mais conhecida por Campeonato da Europa.
Na altura, só as meias-finais, o jogo para o terceiro e quarto lugares e a final é que se disputavam num país-sede. O formato era de uma simplicidade absoluta: 16 seleções nos oitavos-de-final em eliminatória direta a duas mãos, seguindo-se os quartos-de-final e o tal minitorneio decisivo. Esta fórmula manteve-se inalterada até 1976. Só em 1980, em Itália, começámos a ter uma verdadeira fase final, primeiro com apenas oito equipas divididas em dois grupos.
Depois de terem afastado a Hungria (3-1 e 1-0), os soviéticos viram surgir-lhes a Espanha pelo caminho. O regime de Franco escancarou-lhes as portas das meias -finais ao recusar a deslocação da seleção espanhola a Moscovo.
Já em Marselha, dois golos de Ivanov e um de Ponedelnik garantiram a eliminação da Checoslováquia e, na final do Parque dos Príncipes, face à Jugoslávia. Yashin, Igor Netto, Ivanov, Ponedelnik, Metreveli, Voinov e os restantes camaradas aguentaram novo prolongamento, vencendo por 2-1, golo fundamental de Ponedelnik aos 113 minutos. A URSS era campeã da Europa. Tudo foi aproveitado para a glorificação dos vencedores: até o compositor Dmitri Shostakovitch, um adepto confesso de futebol, se atreveu a uma frase bem pouco ortodoxa: “O futebol é o ballet das classes trabalhadoras.”
Quatro anos mais tarde, Francisco Franco vingou-se ao garantir que as meias-finais e a final do Europeu tivessem lugar em Barcelona e Madrid. Perante mais de 80 mil pessoas no Estádio Santiago Bernabéu, já não teve pejo de ver a sua Espanha defrontar a União Soviética. Yashin, Ivanov, Ponedelnik e Voronin defenderam o seu título com puderam. Não chegou. Aos oito minutos já estava 1-1. Aos 84, Marcelino Martínez, de Saragoça, entrava para a lenda. Chamaram–lhe “La Ciclogénesis Explosiva!”