Hilda Machado. O livro póstumo de uma poeta que recusou ser só outra personagem

Hilda Machado. O livro póstumo de uma poeta que recusou ser só outra personagem


Cineasta brasileira escrevia poemas em segredo e quando se matou, em 2007, tinha um livro inédito que podia simplesmente ter desaparecido. O acaso não o permitiu e a sua publicação é um desses raros acontecimentos cujo abalo merece ser sentido por toda a extensão que alcança esta língua


Em vida, Hilda Machado publicou dois poemas. Escreveu outros, não mais do que esses que dá para levar “sofridos” na cabeça, afeiçoando o ritmo deles com o pulso, traçando “minuciosos tratados” para se acertar com o mundo. Foi tendo planos para eles, chegou a registar um livro na Biblioteca Nacional, em 1997. Mas os versos eram tão carne da sua carne que se foi desviando da bala que chegou a ter marcada. De vez em quando, ainda deitava a cabeça de fora, para confirmar “como a paisagem era terrível”, para logo mandar que “se fechassem as janelas”. Podemos escutar esse processo num dos poemas, como volta e meia pesava os prós e os contras entre reclamar-se “Poeta” ou deixá-lo no armário. No poema com esse título às tantas lê-se: “mostrar a quem hei de?/ vai que algum amigo leia os versos poucos/ e deles só prestam uns quatro ou cinco/ e diga/ parece Adélia/ diluidora vagabunda me mato/ e a revolta?/ afinal não é tudo que parece Adélia/ da outra, a Hilst, nem é bom falar/ ou Orides/ praga/ que a minha inveja é só de mulher e absinto/ pra eu beber em cálice”. Neste balanço desenha-se uma clareza que vai muito além da genérica crise de confiança ou de ansiedade. Traça-se aqui, em segundo plano, um demolidor diagnóstico dos processos de receção, do modo como a crítica se contenta em dispor em filas, entre género, idade e o raio, e tudo o que não sejam boias de sinalização à tona fica à espera de financiamento e da luz verde dos gestores do cânone para que os escafandristas montem a sua operação.

(Mas estamos a adiantar-nos. Vamos primeiro organizar esta história, fazer as introduções, atar os atacadores, para no final retomarmos este fio de prata.) Voltando àqueles dois poemas, estes surgiram na “Inimigo Rumor” (n.o 16), revista carioca dirigida por Carlito Azevedo. E é a ele que se deve esse rabo de fora, pois foi a sua insistência que levou Hilda a ceder. Isto em 2004, três anos antes de a "discreta voyeuse", aos 56, ter achado que da vida tinha tido o bastante. Diga–se que dois foi o suficiente para o sobressalto, o que explica que, mais de dez anos depois de ter saído da fila, posto fim à vida, esquecendo o próprio nome, sem alarde, no meio da pilha já alta e de nobre tradição dos que seguem para a morte pelo próprio pé, tenha sido resgatado o livro que ela foi atraiçoando. É o único livro de poemas, e já póstumo, de alguém que, como vimos, não quis vir para a maratona da publicação. Ao invés de atacar em várias frentes, acorrer ao espalhafato miúdo, disparando em todas as direções num desespero sem estratégia, a ideia que nos deixa de poesia prende-se com tudo aquilo que contraria este tempo, com estudar as impossibilidades e chegar àquela “beleza que é o cúmulo”.

Podemos falar de sorte ou preferir os furiosos acasos. O certo é que houve pelo menos um leitor para quem aquelas duas nuvens passageiras se tornaram “miragens peregrinas”. Um leitor que, tropeçando em pétalas, topou que haveria ali uma “catedral submersa”. É a Ricardo Domeneck, poeta brasileiro radicado em Berlim, que devemos agradecer esta iniciativa. E se Domeneck se tornou um exemplo inescapável do poeta militante praticando um discurso hiperpolitizado, viciado na atualidade e no instante, que tantas vezes estrafega a poesia nos braços de um progressismo que corre para checar toda a lista no que toca a questões identitárias, traficando em fundo a promoção do eu, não seria justo não lhe reconhecer tantas outras provas desse talento – raro hoje – para se deixar ferir no espinho de uns poucos versos e desfiar-se quando outros se ficam pelo curto alcance da curiosidade.

Chama-se “Miscasting” o poema que lhe causou o baque, e Domeneck conta da aflição boa que foi descobrir uma jovem poeta. Só que Hilda – como soube depois de escrever a Carlito Azevedo – não era jovem, tinha já passado os 50, e quanto a ser poeta, resistia, pelo menos ao que há de mais mundano, de mais enlameado nessa auréola. Ciosa dos seus versos, a sua diferença é a marca de quem não escreve como se arranjasse as unhas, mas as tem “feitas entre desfiladeiros de livros” e ergue as suas “barricadas contra o sublime e o medo”.

Aquele poema é o tipo de cartão-de-visita que o amor mandaria imprimir. Um amor farto de se dar, um que já deu as voltas suficientes ao desgosto, à desafeição, e voltou sob capa autoirónica, sabendo-se metido num pesadelo “mixuruca”, uma coisa sem orçamento, sem nem o talento para gerar um “terror espectacular”. Mas mais, e melhor, diz ela: “agora finalmente estou renunciando ao pacto/ rasgo o contrato/ devolvo a fita/ me vendeu gato por lebre/ paródia por filme francês/ a atriz coadjuvante é uma canastra/ a cena da queda é o mesmo castelo de cartas/ o herói chega dizendo ter perdido a chave/ a barba de mais de três dias// vim devolver o homem/ assino onde/ o peito desse cavaleiro não é de aço/ sua armadura é um galão de tinta inútil/ similar paraguaio/ fraco abusado/ soufflé falhado e palavra fútil”.

Depois de ter conseguido outros nove poemas que a poeta partilhara com Carlito Azevedo, publicando-os em 2009, num número impresso da revista “Modo de Usar & Co”, Domeneck contactou a irmã da poeta, Ângela Machado, interessado em saber se outros inéditos tinham ficado entre os papéis e arquivos digitais. E foi insistindo até que, em 2014, Ângela anunciou que os poemas tinham dado à costa. Além dos que compareciam no tal manuscrito registado no departamento de direitos autorais da Biblioteca Nacional, havia mais uns quantos poemas em que ela trabalhara até 2005, contos também, e um guião inédito.

Sem um grande aparato crítico, “Nuvens” recupera o título escolhido pela poeta e a oracular epígrafe de Nina Hagen-Torn: “Aquele que escavar em sua consciência/ até a camada do ritmo e flutuar nela/ não perderá o juízo”. É uma edição que se dá conta das peripécias não só do livro como da vida de Hilda Machado, com Domeneck a assinar a apresentação e a fazer o seu número. Assim, nas 96 páginas do volume que nos chega com selo da Editora 34, dá-se um resgate que não contraria mas procura devolver a vontade que à autora foi faltando. Mais questionável é a nota romântica com que Domeneck arranca a apresentação, fazendo dela personagem numa aventura que acaba por ser sua. Diz que ela se tornou a sua Cesárea Tinajero, aludindo à poeta que, no romance de Roberto Bolaño “Os detetives selvagens”, Arturo Belano e Ulises Lima buscam no deserto de Sonora, no México, depois de conhecerem apenas um poema dela.

Nascida no Rio de Janeiro em 1951, a carreira de Hilda Machado foi dedicada ao cinema. Estudou-o em Cuba, fez mestrado na Universidade de São Paulo e deu aulas na Universidade Federal Fluminense e na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Enquanto pesquisadora passou por várias instituições no Brasil e fora, e como cineasta fez uma curta – “Joilson” – que lhe valeu, em 1987, alguns prémios em festivais de cinema no seu país. Sem alarde, nunca escondeu o desejo e, mesmo no capítulo político, conta com uma passagem pelos calabouços, tendo sido presa pela ditadura militar em 1978.

É fácil encontrar outras informações na internet que completam o quadro biográfico. Mais raros são os testemunhos, com os poucos que conviveram com Hilda dando conta da sua personalidade encantadora, ainda que reservada. O poeta Ismar Tirelli Neto, que foi seu aluno na Darcy Ribeiro, diz que quis muito que ela fosse sua mentora, mas que nunca transpôs uma certa distância. Orbitando sem ferir essa reserva, acatou algumas sugestões de leitura, mas nota que Hilda nunca deu sinal do seu caso com a poesia. 

Desse cuidado que não é frieza, dessa sabedoria que se faz com tudo o que foi gasto de uma antiga inocência, há um poema bem expressivo das retiradas estratégicas quando a vida que resta se serve fria, disfarça a ausência mostrando-se ocupada: “Parar/ de fazer mil coisas ao mesmo tempo/ de bater de encontro às coisas/ de encontrar elefantes dentro das lojas// Sou de porcelana”. Há uma série de poemas assim, breves e, na sua concisão, duradouros, como folhas de chá perpetuando o seu golpe num gole de água, a saliva de qualquer boca infundida de um olor e gosto pesado mas doce.

Para terminar, talvez valha a pena ensaiar uma justificação para o interesse que nos merece esta edição brasileira, passando por cima de outras nacionais de vozes canarinhas que têm sabido valer-se da partilha da língua dos dois lados do Atlântico como da novela das sete. Como o poeta Leonardo Gandolfi assinalou numa recensão crítica na “Folha de São Paulo”, Hilda Machado faz-se valer de “justaposições drásticas”, cortes, elisões, um encavalgamento de imagens que vão deliciando o leitor na projeção que vai fazendo. Com o balanço ganho na realização de cinema, como vinca Gandolfi, esta “obra apela mais para a montagem e para a passagem, ao fazer uso decisivo do fluxo e da interrupção”, dando “destaque a diversos andamentos, vozes e registos”. E não é que guarde “distância de paradigmas poéticos como o da despersonalização ou o do testemunho lírico”, como defende o crítico, simplesmente, o seu alto grau de reserva, a constante vigilância e competência técnica afastam qualquer derramamento, imprimem uma tensão verbal que produz um colapso entre planos e registos. É impossível fixar-lhe um regime porque logo a poeta agride a composição. Estes poemas são bobinas cheias de queimaduras de cigarro, estranhas cebolas com um “brilho de laranja ao sol/ amendoeira rubra e pavão”. Toda a fluência aqui é o próprio desastre (“folheia–se uma antologia de acidentes”), uma fluência feita de saltos e assaltos, cacos de vidro afiados na boca, a sensação de se estar perante uma flor raríssima despindo o roupão… A erudição afia a língua a um insulto, a prece é interrompida pelos gritos de um “missionário espancado”. É um festim para esses sentidos de que a gente vai recebendo sinais muito de tempo a tempo. Uma escrita implacável, sem rede, congeminando mil quedas numa só vertigem – os poemas longos lançam-nos de alturas das quais nunca foi tão bom estatelarmo-nos. É um livro breve mas que não acaba. Bem firme no seu tempo, refletindo-o angustiada e criticamente, reclama “as idades do ouro perdidas”, saca um resto de calor, adoça o bico com “raios desdentados de sol medieval/ ouro puro e leite”, mas é um livro de um ser só, de uma voz que se desenvencilha da camisa-de-forças, rechaça comparações e se desfaz da personagem de mulher, preferindo ficar suspensa nas nuvens, aquelas que passam sob o “céu brilhante do exílio”.