SOCHI – Orlando Figes, professor de História na Universidade de Londres, grande especialista na História da Rússia, tem um livro indispensável para quem ama o sangue e a terra russa, como dizia a poetisa Marina Tsevetaieva – chama-se A Tragédia de um Povo. Às tantas, descreve: “Durante a tarde, grupos enormes afluíram ao centro da cidade para um muito esperado espetáculo de son et lumiére. Barraquinhas ao longo do caminho vendiam cerveja em canecas, tortas, bandeiras dos Romanov e lembranças. Houve feiras e concertos nos parques. Ao cair da noite, a Nevski Prospect transformou-se numa massa sólida de pessoas. Todos os rostos se viraram para o alto quando o céu se acendeu com o brilho e com as cores do fogo de artifício e das luzes que cruzaram a cidade por cima dos telhados para, em seguida, pousarem no topo dos monumentos importantes”.
Esta descrição de Niges é ainda do tempo dos Romanov, em Sampetesburgo, mas poderia encaixar-se na noite de festa que ontem irrompeu um pouco por todas as cidades desta Rússia já sem czares. Um velho ditado sentenciava: “O céu é alto e o czar está longe”. Era mais do que um ditado, era o lamento de um povo triste. A convicção que nada havia ao estender da mão que os pudesse salvar dos tormentos da fome e da guerra.
Hoje, a Rússia acordou festiva. O czar pode muito bem estar longe, perdido em tempos imemoriais de impérios, mas o céu é já aqui.
Até onde?
A eliminação da Espanha, após o desempate por grandes penalidades, excitou os adeptos até ao paroxismo. A Rússia comandada pela placidez de Stanislav Salamovich Cherchesov, o homem-que-nunca-ri, uma figura que dificilmente exterioriza os sentimentos, antigo guarda-redes do Lokomotiv, do Spartak de Moscovo e da seleção, não era tida nem achada para as contas deste Mundial, ainda por cima depois da pobre Taça das Confederações que fez no ano passado, precisamente aqui, na Rússia, e de sete jogos de preparação sem sequer uma vitória para amostra. Finalmente, a derrota dura face ao Uruguai, no último jogo do Grupo A (0-3), minou por completo a confiança dos russos na sua equipa.
“Bolijoé gore”: grande tristeza. O desgosto chocou de frente com o orgulho de toda a gente que, nos estádios, seja em que jogo for, pouco importa os adversários que se defrontem, se lança, de tempos a tempos num grito que lhes vem do fundo dessa alma que Dostoiévski afirmava poder ser funda como uma gruta escura: “Rassia! Rassia! Rassia!”
No próximo sábado, aqui mesmo em Sochi, nas margens do Mar Negro, não muito distante da Geórgia ou da Abkásia, pelas 21 horas de Moscovo, o embate contra a Croácia será o mais importante de toda a história do futebol russo pós dispersão da União Soviética. O Fisht Stadium pode assistir ao apuramento da seleção russa para a meia-final de um Campeonato do Mundo, algo que só sucedeu em 1966, ainda com a sigla CCCP (Soyuz Sovietski Socialicistiesksi Respublik) nas camisolas. Nesse Mundial de Inglaterra, a URSS atingiu o ponto mais alto da sua história em mundiais ao ultrapassar a fase de grupos com uma perna às costas (vitórias sobre a Coreia do Norte, 3-0; a Itália, 1-0; e o Chile, 2-1), para eliminar a Hungria (2-1) nos quartos-de-final. Seria a Alemanha (ainda Ocidental) a afastar os soviéticos da final (1-2) e Portugal a roubar-lhes o terceiro lugar (1-2).
Os quartos-de-final foram para a União Soviética barreiras intransponíveis nos Mundiais de 1958, 1962 e 1970, apesar de contar com nomes de gente fantástica como Yashin, Valentin Ivanov, Igor Chislenko e Igor Netto, mais conhecido pelo Ganso. Com a designação de Rússia, nunca uma equipa nacional chegara tão longe numa fase final de um Campeonato do Mundo como agora. Zabivaka, essa espécie de lobisomem que serve de mascote para o Rússia-2018 parece estar, nestes dias, mais sorridente. Passeava-se ontem, pela ruas de Sochi, e senti condoimento pelo pobre desgraçado que, fechado naquele boneco de peles, devia suar que nem um kebab, vítima desta humidade densa de uma cidade que está entre o Mar Negro e as embocaduras do Mzymta e do Shakhe.
Mas, provavelmente não exagerará no sacrifício. Desde que Dzyuba, Smolov, Golovin e Akinfeev continuem a prolongar o sonho de chegarem ao céu do grande futebol. Esse céu que está mais perto do que nunca…