SOCHI – As nuvens acumulam-se, grossas, sobre os cumes das montanhas do Cáucaso. Encobrem esses fiapos de neve que são assim uma espécie de revolta com o calor húmido e opressivo que se instala sobre esta zona da cidade a que chamam Adlerski, ou tão apenas Adler, o sul mais a sul de Sochi onde, em tempos de antanho, se instalaram os marinheiros genoveses que atravessaram o Mar Negro.
Daí de Lisboa, o meu querido amigo Fernando Tordo, diz que todas as feiras de todos os exageros, manias e cegueiras, foram encerradas. O costume no país que pede o balão para a festarola de aldeia e deixa a rua juncada a lixo dos papelotes onde, se calhar, também alguém esqueceu, ao abandono, o cordeirinho de São José, esse santo dos caracóis de oiro.
Portugal fez as malas e partiu. Um Portugal sem poesia tirando alguns momentos mágicos de Ronaldo e Quaresma, agarrado àquela ordem ordenada de que falava Manuel Alegre como funcionário farto de funcionar. Não deixa por cá saudades, o futebol dos portugueses. O nome de Ronaldo multiplica-se pelas esquinas, com muito mais frequência do que o de Messi, mas é só o nome, oco, sem trazer consigo expressões de excitação ou entusiasmo.
Há muito tempo que Portugal não encanta. Há muito tempo que Portugal e Ronaldo são só seis sílabas entrelaçadas umas nas outras sem que haja para além disso a convicção clara de que há um caminho firme a percorrer e um futuro colorido, rútilo e lustroso no final desse caminho. Escrevi aqui que o título de campeão da Europa não pode, de forma alguma, eximir a seleção nacional de oferecer aos seus adeptos, ao próprio Ronaldo e ao mundo inteiro uma inequívoca demonstração do seu talento. A burocracia teimosa pode ter trazido consigo uma inesperada vitória no Estádio de França mas tudo o que decorreu a partir dessa noite mágica, esplêndida e irrepetível, cruza-se com a opinião cada vez mais arreigada que não passou de um daqueles gestos nigromânticos saído de um pé abençoado por um deus qualquer, dos que perdem o seu tempo com as minudências do futebol, e que atirou às urtigas um velho e relho complexo de inferioridade que tornava a França numa espécie de mostrengo imundo e grosso vindo lá da noite de breu de Fernando Pessoa.
Realidade dolorosa
“Este fulgor baço da terra/Que é Portugal a entristecer”, citei aqui, igualmente, a poesia, para falar daquele jogo contra Marrocos. Vamos e venhamos: depois de termos observado com a atenção e a serenidade exigível aos três encontros da seleção nacional neste Grupo B do Mundial da Rússia, alguém, bem lá no fundo, se escandalizou com a eliminação aos pés do Uruguai. Não entro pelos caminhos sempre deprimentes da choradeira pátria, nem pelas ruelas e travessas ainda mais deprimente da mera contabilidade estatística. Estatística continuará a ser sempre, para mim, aquela ciência que me garante que, se eu comer um frango inteiro e o desgraçado que partilhou a mesa comigo não comer nada, teremos ingerido meio frango cada um.
Não, não concordo de forma alguma, na simplicidade aritmética daqueles que suspiram: “Ora a nossa sorte! Não é que eles fizeram três remates à baliza e dois deram em golo?…”
Sabíamos todos os que já tinham visto o Uruguai jogar que o seu estilo é assim: duro, uma defesa praticamente intransponível (um golo sofrido em quatro jogos, precisamente o de Pepe), dois avançados que formam, muito provavelmente, como diz o anúncio de uma cerveja que me estava mesmo agora a apetecer, a melhor dupla deste Mundial. O primeiro golo de Cavani é um monumento ao entendimento entre dois jogadores de exceção e uma demonstração sólida de como é possível desenvolver movimentos de concretização na fronteira da pequena-área partindo de deslocações laterais e de trocas de bola de largura a largura do campo. Quando vi o desencadeamento desembaraçado (ia a escrever, divinamente descarado, à moda do Eça) daquela expressão artística, faltaram-me adjetivos. Não vou recuperar essa falha. O quadro, vívido e perfeito, ficará para sempre pendurado na parede branca do corredor da minha memória.
A presença sorumbática de Portugal neste Mundial precisa de quem a analise à lupa do futuro. Porque não se nota nesta equipa nem evolução nem substância. Foi apenas mais do mesmo. “Brilho sem luz e sem arder…”