SOCHI – Em Seul, durante o Mundial de 2002, havia um jornalista africano que vivia dentro do centro de imprensa. Pode ser que não saibam, mas eu explico. Afinal, como gostava de dizer o mestre Alfredo Farinha, estou aqui, no meu posto, para tentar esclarecer e para ser útil. A acreditação que a FIFA nos atribui dá acesso aos centros de imprensa, onde podemos trabalhar, mas para podermos ir à bancada de imprensa, dentro do estádio, necessitamos de um bilhete complementar. O meu camarada africano, talvez do Congo ou da Zâmbia, não certamente do Lesoto nem da Bechuanalândia, não viu um único jogo. Façamos, por conveniência, de conta que era do Congo: parecia um sem-abrigo com abrigo. As tralhas juntas num molho a um canto da sala enorme, alimentava-se através da máquina que fornecia garrafas de Fanta e Coca-Cola, e todos os dias, religiosamente, dedicava-se a um semicúpio no WC do centro de imprensa e, fresquinho, enchia-se de otimismo: “Hoje devo receber a transferência bancária lá do meu jornal.” Que me recorde, nunca lhe enviaram um maravedi.
Um centro de imprensa é um mundo à parte dentro de um mundo à parte do mundo.
Sento-me para tomar um café enquanto os minutos se vão esgotando até ao início do Portugal-Uruguai. A meu lado, um homem grita num histerismo de rouquidões. Está de olhos fixos num dos muitos ecrãs que se espalham em redor e relata para um microfone o que está a ver, transmitido em direto de Kazan. Vem um homem lá dos confins de Buenos Aires, de Rosário ou até mesmo das infinitas planícies da Patagónia para relatar um jogo que está a ver pela televisão? Algo não bate certo neste antijornalismo que tomou conta do mundo, sem respeito por tudo aquilo que nos ensinaram no tempo dos grandes mestres.
Vinicius de Moraes dizia que o uísque é que era o melhor amigo do homem. E concluía: o uísque é o cão engarrafado.
A televisão transformou-se no maior amigo do jornalista. Ou melhor, da negação do jornalista. É, para eles, um cão se não engarrafado, fechado numa tela da qual ladra para o mundo.
Abro jornais portugueses e leio crónicas dos jogos de Portugal escritas das redações, de casa, do café, do Lidl ou do Ikea ou do diabo a quatro. Recordo-me do tempo em que o Vítor Santos, lá na Travessa da Queimada, no tempo em que “A Bola” ainda eram as cinco letras mágicas, se revoltava contra o facilitismo: “Isto não é o PIM-PAM-PUM!”
Não era.
Mas é.
Pim, e fica-se sossegadinho à secretária a escrever as incidências de um jogo que decorre a mais de 9 mil quilómetros de distância. Que importa? O leitor aceita tudo, mastiga tudo e deita fora no momento imediato. De que nos serve estar aqui, longe, percorrendo cidades, ruas, contornando esquinas, informando sobre a vida no meio da vida, chafurdando por entre os dramas da fome e por entre os esplendores da opulência, testemunhando os factos que se desenrolam perante os nossos olhos, suportando as lágrimas e escutando os risos. Eu sou direto como Zola: acuso!
Acuso o pam e o pum do não jornalismo, da preguiça, da poupança, do encolher dos ombros. Não, não: o leitor não merece qualquer coisa! Ele merece que vamos, todos os dias, a todas as horas, ao encontro do acontecimento onde ele aconteça. E não temos o direito de ficar em casa, a contar-lhe pela televisão aquilo que se desenrola lá longe, entre o tempo e a distância, como se vivêssemos por entre os episódios de uma novela que nada mais tem para dar do que simples entretenimento.
Não sei por quanto tempo mais poderei continuar a ser um jornalista que não fica em casa. O mundo mudou. E eu estou absolutamente certo, com Alcione: “Mas se eu fico mudo/ Esse mundo imundo/ É capaz de me tentar mudar.”
Até lá, estarei aqui, onde as coisas acontecem, dedicando à profissão que me apaixona a verdade e a lealdade.