“Este reino da lealdade humana exercida ao ar livre”*


O espartilho tático com que Fernando Santos arquitetou a equipa em torno de CR7 batia certo no papel, mas deixou de fora a possibilidade de Gonçalo Guedes, Bernardo Silva, Bruno Fernandes ou Gelson ousarem sair do modelo


A imagem de Cristiano Ronaldo a amparar Edinson Cavani ficará para a história deste Mundial. O melhor do mundo ajuda o melhor do jogo (que derrotou Portugal) a sair do campo em sofrimento.

Para Ronaldo, esta era mais do que uma partida. Desta feita não disputava apenas o Mundial ou a indiscutibilidade da sexta bola de ouro, mas a possibilidade de ombrear com Maradona no título de melhor de sempre. Este é o único galardão supra-institucional que não se vence, mas ganha- -se a possibilidade de disputar a memória coletiva. Provavelmente faltar-lhe-á momentos com um grau de dramaticidade semelhante aos do Mundial de 1986 – momentos que o capital não consegue produzir artificialmente.

Se se poderá gerar fora de um Mundial? Ninguém sabe.

Por mais que se falseie uma Liga dos Campeões (europeus) com terceiros e quartos classificados das ligas com mais dinheiro ou sem campeões nacionais de vários países da Europa e que a FIFA defina regras, prémios e sanções que agravem as diferenças, o Mundial continua a ser o momento maior do futebol que, não raras vezes, escapa ao crivo do controlo da “indústria”.

Não partilho da ideia de que Ronaldo era a exceção de uma seleção sem qualidade. O espartilho tático com que o eng.o Fernando Santos arquitetou a equipa em torno de CR7 batia certo no papel, mas deixou de fora a possibilidade de Gonçalo Guedes, Bernardo Silva, Bruno Fernandes ou Gelson ousarem sair do modelo. Como escreveu Galeano, uruguaio por sinal, “a história do futebol é uma triste viagem do prazer ao dever. Ao mesmo tempo que o desporto se tornou indústria, foi desterrando a beleza que nasce da alegria de jogar só pelo prazer de jogar”. Ficar–nos-á sempre a dúvida se um Bernardo Silva a transportar a bola pelo campo inteiro, como nos dez minutos finais da última partida, ou um Quaresma a tempo inteiro não nos teriam proporcionado mais alegrias. Mas não duvidemos que o buraco nas costas dos laterais que Cavani tão bem explorou seria sempre um ferida aberta na defesa.

Sendo certo que o Brasil de 82 mostrou ao mundo que jogar melhor futebol não basta, o futebol tecnocrata – nas palavras de Galeano, “que renuncia à alegria, atrofia a fantasia e proíbe a ousadia”– também raramente tem vingado.

Coincidamos em perceber que nem sempre se joga bem, que nem sempre as estrelas brilham e que nem sempre quem é melhor vence e que, provavelmente, isto é o que dá o caráter humano e não controlável a este jogo apaixonante.

 

* Frase atribuída a Antonio Gramsci por Eduardo Galeano

 

Escreve à segunda-feira