A cúpula do Partido Democrata ficou em choque na noite de terça-feira. Alexandria Ocasio-Cortez, ativista dos Socialistas Democráticos da América, de 28 anos, venceu as eleições primárias democratas para o 14.º distrito de Nova Iorque com 57,5% dos votos, destronando o histórico democrata Joseph Crowley, que desde 1999 ganhava consecutivamente as eleições no distrito. A derrota assume outra dimensão quando se tem em conta que Crowley é o número 4 dos Democratas na Câmara dos Representantes e o favorito para presidir ao órgão legislativo se os Democratas conquistassem a maioria nas eleições intercalares de novembro. Agora, Ocasio-Cortez enfrentará o candidato republicano, Anthony Pappas, para um lugar como congressista. Se o conseguir, será a sua mais jovem representante na Câmara de Representantes.
Estará o Partido Democrata a virar à esquerda na era Trump? A dúvida paira no ar, mas parece aprofundar-se a cada disputa eleitoral. Ainda nada está decidido, mas a vitória de Ocasio-Cortez poderá ser um pequeno sinal de uma tendência que se poderá acentuar.
Alexandria Ocasio-Cortez nunca tinha sido candidata e, segundo a própria, nem sequer pensara poderia vir a sê-lo um dia, quanto mais ganhar. “Nunca imaginei a candidatar-me”, garantiu à revista “New York”. “Exclui essa possibilidade porque senti que me tinham excluído. Sentia que a única forma de efetivamente concorrer a um cargo era se tivesse acesso a riqueza, influência social e poder dinástico – e eu sabia que não tinha nenhuma dessas coisas”. Mas a vida traz surpresas e a ativista candidatou-se e ganhou mesmo as eleições primárias.
Filha de uma porto-riquenha e de um americano nascido no Bronx, Nova Iorque, Ocasio-Cortez licenciou-se em Economia e Relações Internacionais na Universidade de Boston, mas, terminado o curso, as portas fecharam-se. Para pagar os estudos teve de contrair um empréstimo bancário – uma situação comum nos EUA para centenas de milhares de estudantes que acabam altamente endividados no final do curso. Viu-se obrigada a voltar para casa da mãe e a trabalhar como empregada de mesa para ajudar a pagar as contas e o empréstimo. Três anos antes, o pai, motorista de autocarro, tinha falecido, deixando a mãe sozinha. “Nasci num sítio onde o código postal determina o teu destino. Não é suposto que mulheres como eu se candidatem a cargos públicos”, disse num vídeo da campanha. A sua vida assemelha-se à de tantos outros jovens norte-americanos, o que lhe permitiu afirmar-se como uma pessoa comum que se candidata a um cargo político. Uma imagem que contrasta com a do establishment democrata, onde o dinheiro, os contactos e as ligações familiares abrem as portas – e os privilégios – da vida política.
Começou-se a politizar na universidade e colaborou com o senador democrata Edward M. Kennedy, do Massachusetts, em temas relacionados com a imigração, mas rapidamente percebeu que não era isso que a motivava, pelo menos, naquele momento. Dedicou-se a organizar movimentos comunitários de base em torno da literacia e educação para jovens. Com a experiência, vieram novos desafios. Em 2016, foi uma das organizadoras da campanha presidencial do senador Bernie Sanders. Com a derrota de Sanders face a Hillary Clinton, o horizonte da jovem alargou-se e decidiu correr a um cargo no congresso.
EUA polarizado A derrota de Hillary Clinton para Donald Trump, a maioria dos Republicanos em ambas as câmaras do congresso e do Partido Democrata, mas também a inédita campanha de Sanders, nas eleições parciais para o congresso parece ter criado a oportunidade para uma viragem à esquerda no eleitorado do partido. Neste novo contexto, Ocasio-Cortez tinha hipóteses – e a governação do presidente Trump tem ajudado a polarizar posições. Uma nova organização política, a Brand New Congress, convidou-a para ser candidata nas eleições de novembro. Mas antes tinha de destronar um peso pesado da política Democrata, Joseph Crowley. Entre o receio e a oportunidade, a jovem aceitou concorrer com uma campanha alicerçada em movimentos de base que conseguiu o apoio de outros movimentos, Justice Democrats, Our Revolution, Democracy for America e dos Socialistas Democráticas da América. “Juntámos uma máquina [eleitoral] a um movimento”, disse a candidata ao Político, acrescentando que quando começou a campanha não tinha mais que “um saco de papel e uma prancheta”.
No seu programa eleitoral está a promessa de um Medicare (sistema de saúde) para toda a gente, a garantia de empregos federais e a possibilidade dos jovens frequentarem o ensino superior sem pagarem propinas. Entre as propostas, destaca-se ainda a de eliminar a agência federal de Imigração e Alfândega (ICE, sigla em inglês), responsável por exercer a política de “tolerância zero” de Trump para a migração. Em resposta, Crowley, sabendo da diversidade étnica do distrito, onde 50% são hispânicos, 22% caucasianos e os restantes asiáticos, preferiu defender a reforma da ICE, ao mesmo tempo que a considerava “fascista”. Entre a verdade e o calculismo eleitoral, Crowley acabou por ficar em desvantagem num discurso que não era o seu.
Se à primeira vista o programa é radical para os parâmetros norte-americanos, a verdade é que parece ter respondido aos anseios do eleitorado, ao mesmo tempo que se diferenciava do seu adversário, visto como um representante tradicional da classe política Democrata. A candidata não teve receio de avançar com um discurso radical sobre etnias, género, idade e, principalmente, de classe.
Durante a campanha eleitoral, atacou Crowley por receber donativos de multinacionais e de Wall Street, enquanto a candidata decidiu, à semelhança de Sanders, financiar a sua campanha com pequenos doadores, num máximo de 200 dólares (171 euros) por pessoa ou empresa. Já nos debates, a candidata concentrou-se em denunciar o facto de Crowley passar a maior parte do tempo fora do distrito, a que se juntou a polémica de Crowley ter enviado uma substituta latina, muito parecida com Ocasio-Cortez, para um debate. Uma estratégia que lhe saiu mal, sendo fortemente atacado nas redes sociais. Além das suas propostas, a candidata conseguiu ainda evidenciar a distância entre os representantes e os representados. “Existe uma profunda discrepância entre a comunidade e os seus representantes”, afirmou ao Político. “Nem todos os Democratas são iguais”, disse num outro vídeo de campanha, acrescentando que um Democrata que não “envie os seus filhos para as nossas escolas, não beba a nossa água ou respire o mesmo ar que nós não nos poderá representar”.
Insurgência A vitória de Alexandria Ocasio-Cortez é um choque político para os Democratas, mas poderá ser simplesmente o primeiro de muitos mais. Navegando em território desconhecido, candidatos apoiados pelos Democratas Socialistas da América (DSA) estão a disputar as primárias Democratas por todo o país, radicalizando a linha política, mas principalmente as bases.
Na semana passada, outras três candidatas democratas radicais – Summer Lee, Sara Innamorato, Elizabeth Fiedler, Kara Eastman –, apoiadas pelo DSA e com histórias de vida e programas eleitorais semelhantes ao de Ocasio-Cortez, ganharam as primárias em três distritos da Pensilvânia, tradicionalmente Democratas, e no Nebraska. Todas concorreram contra candidatos da velha guarda, semelhantes a Crowley, mas sem a sua importância política a nível nacional. Fala-se mesmo de “uma insurgência” radical entre os democratas.
Se os candidatos apoiados pelo establishment Democrata têm sofrido derrotas nas primárias para as eleições intercalares de novembro, o mesmo não se pode dizer dos candidatos republicanos apoiados pelo presidente Donald Trump. O governador republicano da Carolina do Sul e um dos primeiros apoiantes de Trump, Henry McMaster, e o republicano Dan Donovan, em Nova Iorque, venceram as eleições primárias do seu partido, deixando claro que o chefe de Estado consegue influenciar as eleições.