“A política é uma arma, em todos os pontos revolta pelas vontades contraditórias; ali dominam as más paixões; ali luta-se pela avidez do ganho ou pelo gozo da vaidade; ali há a postergação dos princípios e o desprezo dos sentimentos; ali há a abdicação de tudo o que o homem tem na alma de nobre, de generoso, de grande, de racional e de justo; em volta daquela arena enxameiam os aventureiros inteligentes, os grandes vaidosos, os especuladores ásperos; há a tristeza e a miséria; dentro há a corrupção, o patrono, o privilégio. A refrega é dura; combate-se, atraiçoa-se, brada–se, foge-se, destrói-se, corrompe-se. Todos os desperdícios, todas as violências, todas as indignidades se entrechocam ali com dor e com raiva.”
Eça de Queiroz, in “Distrito de Évora” (1867)
Mais ou menos atordoados pelos relatos dos jogos de Portugal no Mundial da Rússia, assoberbados e divertidos ou chocados pelo distúrbio bipolar dos personagens que flutuam à volta da novela do Sporting e distraídos por um quase Verão – que ainda não nos despertou os níveis máximos de alerta que se exigem perante o nada que se intui que foi feito para uma época de incêndios diferente –, fica a impressão de que muito provavelmente nos estará a escapar, para cá do futebol e no mundo real, o exótico cenário de um país que não é, como intuiu com génio Almada Negreiros, verdadeiramente um país, mas sim apenas um sítio, e, ainda por cima, mal frequentado.
Embalados na longa novela das “operações Marquês”, dos meandros criminosos do colapso do GES, dos Pinhos da vida, das toupeiras do Cashball e quejandos, que os golos do Ronaldo e as assembleias-gerais do Sporting vieram ofuscar, eis que os pobres portugueses, com os nervos mais ou menos intactos de outra exibição de serviços mínimos, se preparam para a folga estival das merecidas férias sem prestar atenção à espuma dos dias.
De certa forma, lá vamos tendo o futebol a ser aquilo que dele se espera, desviando-nos da importante reflexão que não devia passar à margem das notícias de hoje e de outras, cada vez mais useiras e vezeiras, criminalidades.
Entre outras coisas, ontem ficámos a saber que há mais políticos, alguns deputados com funções importantes, a ser constituídos arguidos por causa das viagens do Euro 2016, sendo estes inquéritos por recebimento indevido de vantagem, o produto autofágico de uma legislação revogada pelo costume contra legem dos nossos eleitos que apenas o MP teima em perseguir, contra o coro mais ou menos descriminalizante dos Presidentes da República e da AR.
Estas regras, tal como o apêndice ou o baço, são reminiscências de um putativo quadro moral que verdadeiramente nunca existiu e que serviu para pretensamente moralizar uma classe de pessoas que não acreditam na moralização e que entendem estar, inclusivamente, acima da lei, ao contrário dos incautos cidadãos eleitores.
É que verdadeiramente, para lá do pão e circo destes dias, as notícias de hoje não são melhores em relação à probidade e integridade das nossas instituições públicas.
Há não muito tempo, e também aqui, tivemos oportunidade de comentar a inefável maquinação dos nossos partidos para fugirem ao escrutínio sobre o seu financiamento e o assalto ao pote do IVA que tentaram, com a isenção subjetiva de imposto que negociaram em comité reservado e levaram à votação com razoável sigilo, depois de fazerem atas dos seus trabalhos em fórmulas encriptadas.
Absolutamente esclarecidos, desde aí, sobre a tendência para a marginalidade que os partidos têm quando se fala de financiamentos, temos hoje nota bastante de que, não contentes com o assalto ao Orçamento, os partidos, além de conspirarem para ter vantagens que não têm qualquer justificação moral, também já terão passado à prática de ilegalidades na sua obtenção, estando PS e PSD a ser investigados por esquemas de financiamento ilícito.
É ocioso referir que a tal ideia de impunidade a que nos referimos acima continua a dar ares da sua graça e demonstra a transversalidade da delinquência por tendência dentro do fenómeno partidário, a qual atravessa desde a cultura das jotas até às direções nacionais e desde as juntas de freguesia ao parlamento e ao governo.
De uma maneira geral, dois pares de décadas depois da revolução que universalizou o direito a votar e o acesso aos cargos políticos, as notícias do dia dão conta, envergonhada, da revogação tácita do sentimento de moralidade e retidão e dos princípios do interesse público e do bem comum, estando morta e enterrada, até prova em contrário, a ideia de que os cargos políticos servem, não para os seus titulares se servirem, mas sim para servirem os seus eleitores.
Elucidativo disto mesmo vem, na espuma das notícias deste dia, o pedido do MP de Braga de condenação do presidente da câmara Mesquita Machado por prática de um crime de titular de cargos públicos.
Ou ser o ex-vice da bancada do PSD o principal suspeito de crimes de ajustes diretos ilegais.
Quando, mais ou menos ao mesmo tempo, as instalações da AICEP no Porto estão a ser alvo de buscas e o que se sabe, citando a RTP, é que: “O suspeito é um alto quadro da AICEP sediado no Porto, mas até ao momento ninguém foi detido” e “os crimes em causa são corrupção, falsificação de documento e fraude na obtenção de subsídio, com um desvio de quatro milhões que terá sido evitado por estas buscas.”
Infelizmente, estamos apenas perante uma amostragem das primeiras páginas do dia.
Isto, ao que parece, é o nosso novo normal ou, se calhar, sempre foi.
Advogado na norma8advogados
pf@norma8.pt
Escreve à quinta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990