O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) deu ontem razão a parte de um recurso apresentado por Carlos Cruz, condenado a seis anos de cadeia por abusos sexuais de menores no âmbito do processo Casa Pia. E o ex-apresentador de televisão admite pedir a reabertura do processo em Portugal, no início de outubro, podendo vir a haver novo julgamento.
O recurso de Carlos Cruz visava dois pontos: por um lado, a defesa queixava-se de não ter podido confrontar as vítimas, em tribunal, com diferentes versões dos abusos que apresentaram ao longo do processo. Por outro, estava em causa a recusa do Tribunal da Relação (TR) de Lisboa em aceitar novas provas que Carlos Cruz quis adicionar ao caso, como entrevistas de vítimas a órgãos de comunicação social em que admitiam não terem sido vítimas de abusos pelo ex-apresentador, livros ou perícias médicas.
Sobre o primeiro ponto, o TEDH não deu razão à defesa e considerou que as vítimas foram ouvidas e questionadas, mesmo que indiretamente, por diversas vezes. Já no que diz respeito à apresentação de novas provas, os juízes de Estrasburgo concluíram que o ex-apresentador “teria beneficiado da análise de novas versões dos factos”. “Enquanto o seu recurso estava pendente, o sr. Carlos Pereira Cruz apresentou três pedidos ao Tribunal da Relação de Lisboa, tendo em vista a apreciação de provas a seu favor. Também solicitou que algumas pessoas fossem ouvidas, argumentando que as provas em questão mostravam que as pessoas mentiram em tribunal”, lê-se na súmula da decisão, divulgada ontem.
À época, a Relação de Lisboa recusou os pedidos com o argumento de que não podia examinar evidências que não tinham sido vistas pelo tribunal de primeira instância. Mas os juízes de Estrasburgo consideram que essa recusa impediu Carlos Cruz de ter “um julgamento justo”.
No mesmo recurso, o médico Ferreira Diniz, o embaixador Jorge Ritto e o antigo provedor da Casa Pia Manuel Abrantes – condenados a sete anos, seis anos e oito meses e cinco anos e nove meses de prisão, respetivamente – alegaram que não tiveram direito a um julgamento justo e que o processo demorou demasiado tempo, queixas que Carlos Cruz também subscreveu. Mas o TEDH considerou que todos tiveram direito a um julgamento adequado.
Os juízes referem, aliás, que a morosidade do processo – cuja investigação durou 11 meses e o julgamento seis anos –“não pode ser considerada excessiva”, atendendo à “extrema complexidade” do caso e ao facto de existirem 32 vítimas e um “grande número” de crimes cometidos em vários locais. “O tribunal ouviu 920 testemunhas, 19 consultores, 18 peritos”, além de ter analisado “64 mil páginas de documentos”, lê-se na decisão.
O advogado de Carlos Cruz, Ricardo Sá Fernandes, adiantou ontem ao i que a defesa vai pedir a reabertura do processo ao Supremo Tribunal de Justiça. E diz-se confiante em que o julgamento possa vir a ser repetido. O Estado português ainda tem três meses para recorrer da decisão ontem conhecida, mas Sá Fernandes acredita que não haverá recurso. “Espero que o Estado não faça o pedido de revisão. Seria desumano tentar limitar os direitos das pessoas”, justifica. A defesa do ex-apresentador vai “aguardar” até ao final de setembro e, em outubro, avançará com o pedido de reabertura do processo junto do Supremo – que poderá deferi-lo ou não. Alguns juristas com quem o i conversou ontem acreditam que a decisão do tribunal europeu “muito dificilmente” terá “consequências práticas”, mas Ricardo Sá Fernandes está convencido do contrário. “Acredito que a decisão será de deferimento, atendendo àquilo que o TEDH concluiu”, defende.
Caso o Supremo venha a dar razão a Carlos Cruz, haverá novo julgamento, o que implicará novas inquirições às vítimas, a algumas das testemunhas e aos arguidos.
O ex-apresentador de televisão está doente e recebeu a notícia da decisão do TEDH através de Sá Fernandes. “Está feliz. Foi uma lufada de ar fresco”, garante o advogado.
Contactado pelo i, o Ministério da Justiça não revela se vai recorrer da decisão, dizendo apenas que “o acórdão irá ser objeto da necessária análise após o que será tomada uma decisão”.