Jângal. E isto é uma selva, a selva dos Praga

Jângal. E isto é uma selva, a selva dos Praga


Ao São Luiz, em Lisboa, regressa o Teatro Praga com um espetáculo dentro de uma pasta que é uma selva. Com Gisela João entre o elenco do costume, estreia hoje “Jângal”


Gisela, João, Joana, uma garrafa de GHB, uma cadeira, uma cobra, um golfinho cor-de-rosa. Melhor só uma aranha de batatas fritas. Do McDonald’s. Mas devagar, não é caso para se assustar, até porque pela altura em que começam a chegar já Gisela João explicou: “Hello, welcome to Jângal”, depois de um início em “Trouble”. Será ela que depois de informar sobre este lugar em que estamos, Jângal, que é mais ou menos uma selva, o que quer dizer que não será nada em específico e que poderá por isso ser tudo, tudo o que se quiser. No caso, será uma pasta, a que chama “folder”, porque continua a falar em inglês, uma pasta a guardar “entidades existentes e inexistentes”. Uma pasta no desktop de um computador. E continuará a explicar Gisela João.

Que se somos capazes de falar de entidades inexistentes, então terão alguma forma de existência. Que se por um lado não acreditamos que os dragões existem, por outro reconheceremos que os dragões cospem fogo. Continuará Gisela João, ainda antes que chegue João, sobre onde estamos, ao que vamos e, já que estamos dentro de uma pasta, olhemos para o primeiro ficheiro: “We’re in trouble”.

Mas antes disso, dos problemas, uma pausa na palavra. “Jângal”. Porque não parece, e não admirava que não fosse, mas foi esta a única palavra em português que ouvimos até aqui. Importada para o português (como para o inglês) do sânscrito – “jângal” designava, na língua antiga dos brâmanes, uma terra por cultivar, terreno por explorar, intocado ainda pela mão humana – e entretanto caída em desuso. Precisamente por isso vieram os Praga recuperá-la para este espetáculo a fechar a programação da temporada no São São Luiz, em Lisboa. 

“Interessou-nos, por um lado, o facto de esta palavra estar de alguma forma esvaziada de sentido, na medida em que como já não é usada já ninguém sabe o que quer dizer. Portanto, podemos nós preenchê-la com os nossos significados”, diz José Maria Vieira Mendes, coautor do texto, com André e. Teodósio e Pedro Penim. “Por outro lado, a palavra selva tem a característica de não significar nada em concreto. Em termos botânicos e biológicos não quer dizer nada, porque existe a floresta tropical, existem várias denominações botânicas e científicas para designar vários tipos de vegetação, mas quando se fala de selva, selva pode ser tudo. Não só vegetação, também selva urbana. Ou caos, um sítio de desordem, espaço não-humano ou em que o humano não tocou ainda.”

Pastas, desordem ou uma nova ordem

Em “Jângal”, o caminho foi então partir daí para olhar a selva de um ponto de vista que não é o humano, da ordem imposta. “Se calhar aquilo que entendemos como desordem é a ordem. Uma outra ordem.” Ou outra ideia de ordem, e virá sobre isso refletir “Jângal”. Daí que animais, objetos até, possam ter voz aqui, no território que é esta pasta. “Sejam elas uma banana, um golfinho, todas as entidades que normalmente não têm voz têm uma no espetáculo – obviamente que isso é falseado, na medida em que a voz que essas personagens têm lhes é atribuída por nós, porque nós é que falamos. Mas tentámos pensar em discursos, ou em conteúdos que deslocassem um bocadinho o centro das atenções. Este espetáculo tenta criar um espaço a que chamamos ‘Jângal’ onde precisamente todas essas entidades vão conviver sem se dizer que há umas que existem mais do que outras.”

De uma companhia que se vem debruçando sobre questões de identidade e de género, “Jângal” vem alargar o espectro temático para lá das questões humanas. “O tema parece um bocado inevitável a partir do momento em que é dado como certo que há um conjunto de alterações irreversíveis no nosso planeta motivadas pela influência do Homem, que nos obrigam a repensar a posição do humano no planeta, a repensar as nossas atividades, a repensar o nosso papel no meio disto.” Mas não apenas sobre o antropoceno ou as alterações climáticas. “Temos andado a trabalhar muito sobre questões de identidade, questões de género, e quisemos alargar um bocadinho o espectro da nossa preocupação à questão das várias existências, das várias entidades com as quais o humano convive.”

E o desktop, as pastas, os ficheiros, tudo virá servir uma estrutura em que as cenas não se sucedem por relações de causalidade, nota ainda José Maria Vieira Mendes. “Não. As razões pelas quais uma cena se segue à outra são as mesmas pelas quais [na internet] abrimos uma página e a seguir clicamos numa coisa de que gostamos e passamos à outra. E às vezes é só isso, é só o clique. Fazia todo o sentido para nós juntar toda esta ideia de existência à ideia da experiência, da vivência da internet. Porque é uma maneira de existir muito mais desordenada, muito mais de um clique. Interessava-nos criar também essa experiência visual no espetáculo.”

Um espetáculo que, avisa, veio para criar novas ficções. Para isso e para nos trazer Gisela João como personagem e como ela própria – a cantar sem deixar de ser ela mas sem que o que cante seja fado. Com Violet. Que isto é o humano a juntar-se à música de “computador”.