Rosa e Francisco chegaram a Fortes na mesma altura em que a fábrica de tomate da aldeia mudava de donos. Os filhos estavam finalmente crescidos e o casal deitou mãos à obra. Deixaram Aljustrel, renovaram a casa do pai de Francisco, compraram animais e semearam hortas. Era assim que planeavam passar a velhice: num monte isolado à entrada da aldeia do concelho de Ferreira do Alentejo. Por esses dias, mesmo em frente ao monte, do outro lado da estrada nacional 383, também se planeava o futuro. Um grupo espanhol e um empresário do Norte tinham acabado de comprar as instalações da fábrica – que, pouco tempo depois, mudava de ramo para se dedicar à transformação de bagaço de azeitona em óleo alimentar.
A escolha do ramo de negócio foi certeira: a 300 metros da aldeia de Fortes, a AZPO – Azeites de Portugal transforma um terço de toda a produção do Alentejo. Por ali passa o bagaço de azeitona de 200 mil hectares de olival e tudo o que é produzido é exportado a seguir. Nos últimos nove anos, a fábrica cresceu e foi-se impondo aos moradores, ao mesmo tempo que a cultura intensiva do olival foi engolindo os montes alentejanos. “As instalações começaram por ter uma chaminé e hoje são quatro”, recorda Rosa Dimas, a vizinha mais próxima da fábrica, que entretanto adoeceu – culpa dos fumos, garante – e desistiu do sonho de passar a velhice no monte do sogro.
Até há quinze dias, quando a laboração em Fortes foi suspensa por ordem do IAPMEI, devido à deteção de infrações graves cometidas pela empresa (entre elas a emissão de poluição atmosférica acima da lei), a fábrica trabalhava noite e dia, lado a lado com a aldeia submersa numa névoa de cinzas oleosas. A história é antiga e assim que a AZPO se instalou em Fortes, as gentes da terra declararam-lhe guerra. Choveram cartas para a Câmara de Ferreira do Alentejo e para a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento local – quase todas sem resposta, segundo os remetentes. E as brigadas do Ambiente da GNR foram chamadas dezenas de vezes à povoação, sobretudo nos dias em que o nevoeiro de cinza era mais denso. “Levantavam autos, mas nunca acontecia nada”, recorda Rosa Dimas.
Os anos da resignação E foi assim que Fortes esmoreceu e foi desistindo da luta. “São quase todos idosos. Foram-se resignando”, justifica Fátima Mourão, que encabeça, há quase dois anos, a plataforma “Problema ambiental em Fortes”. Resignados, os moradores foram aprendendo a lidar com a estranha chuva miudinha de cinzas misturadas com óleo que pinta telhados, placas, carros estacionados, janelas e até os produtos das hortas. Muitos deixaram de cultivar. Rosa e Francisco, por exemplo, desistiram da agricultura. “Os vegetais e as frutas ficavam cobertos pela gosma preta, que não saía mesmo esfregando”, descreve Francisco Venâncio.
Houve até quem tenha deixado de sair à rua e passado a usar máscara dentro de casa. Luísa Coelho, que faz 76 anos no domingo, vive na rua principal da aldeia e não vê os vizinhos durante meses a fio. Depois da chegada da fábrica, passou a ter problemas nos olhos – choram e escamam permanentemente – e, desde então, só sai para ir às compras a Ferreira do Alentejo. As janelas de casa estão sempre fechadas e, quando chove, a neblina piora. “Baixa e entra pelas frestas das das portas”, conta a idosa.
Dos cerca de 80 habitantes da aldeia, muitos queixam-se de alergias, asmas, constipações permanentes e problemas respiratórios. Rosa Dimas, que foi chamada a fazer exames médicos em Lisboa, recebeu ordem clínica para mudar de casa e o mesmo foi aconselhado ao marido de Luísa Coelho. “Mas a gente tem lá agora dinheiro para se mudar?”, queixa-se a idosa.
Quem vive em Fortes teve de aprender a ler os ventos. Quando sopram do lado da fábrica, o fumo denso e a chuva de partículas gordurosas aumentam. Podem manter-se assim dias ou semanas inteiras e, nessas alturas, a aldeia fica submersa em nevoeiro. Sai-se à rua com a cara tapada com lenços. “Em abril deste ano, foi o mês todo”, recorda Idalina Coragem, que vive mesmo no meio da povoação e que conta ainda que hábitos tão simples como estender e secar peças de roupa são tarefas difíceis: “A roupa fica cheia de cinzas e de óleo. Às vezes, achamos que o vento está de uma determinada maneira e que conseguimos secá-la, mas se não vigiamos e não estamos atentos, o vento volta a virar e tem de se lavar tudo outra vez”.
No verão, mesmo com as temperaturas a chegarem aos 40 graus, há quem não se atreva a abrir as janelas. E, seja em que altura for, existe um cheiro intenso no ar – que ainda se mantinha anteontem, quando i esteve em Fortes, apesar de fábrica estar parada há cerca de duas semanas.
A revolta de Fortes Numa noite, Rosa e Francisco tiveram de deixar o monte. “Havia tanto fumo que se não saíssemos morríamos”, contam. Chamaram a GNR e foi aberto um inquérito, com os testemunhos dos militares e um conjunto de vídeos que o casal entregou às autoridades e que mostravam a quantidade de fumo denso que ameaçava engolir-lhes a casa. “Meses depois, recebemos uma carta a dizer que o processo tinha sido arquivado por falta de provas”, conta Rosa.
Por isso, quando adoeceu gravemente pela primeira vez, em dezembro de 2016, a vizinha da fábrica resignou-se. “Eu suspeitava que era por inalar o que sai das chaminés, mas também sabia que as coisas não se resolveriam. Pensei muitas vezes que ia acabar, simplesmente, por morrer aqui”. O médico de família, em Ferreira do Alentejo, passou-lhe antibióticos e expetorantes, mas nunca lhe mandou fazer exames. Só meses depois, quando voltou a adoecer a caminho do Luxemburgo, onde vive um dos filhos, soube que tinha os pulmões obstruídos. “Fiz uma bateria de exames e a médica luxemburguesa, depois de ver vídeos da poluição, disse-me que se não mudar de casa posso ficar com lesões irreversíveis”.
Pouco tempo depois, Fátima Mourão, que vive a dois quilómetros e meio da aldeia – num monte que comprou com o marido há 14 anos, quando decidiram deixar Lisboa para morar no campo – fartou-se de ver os vizinhos doentes e meteu na cabeça que havia de resolver o problema de uma vez por todas. Pegou na bicicleta, foi à povoação e bateu a todas as portas. Pediu dinheiro, “cinco euros aqui, cinco euros ali”, para contratar apoio jurídico. E a 17 de maio deste ano, deram entrada no tribunal 65 queixas-crime dos moradores contra a fábrica.
Quase dez anos depois, as gentes de Fortes encheram-se de coragem. E, coincidência ou não, há quinze dias a fábrica parou. Será só até outubro, mas festejou-se na aldeia. “Porque agora podemos respirar por um bocadinho”, diz Luísa Coelho. Com o fim da neblina de cinza e óleo, ninguém parece importar-se com o cheiro intenso que ainda paira sobre a aldeia e que se sente na A2, a quilómetros de distância. “Na verdade, já nem damos por isso… estamos tão habituados ”, explica Idalina Coragem.
Ainda sobre a suspensão, aquilo que para alguns é “uma pequena vitória”, para outros não significa rigorosamente nada. “A fábrica já tinha terminado a campanha de 2017/2018 quando fechou as portas e todos os anos há uma paragem na laboração por altura do verão”, avisa Francisco Venâncio, um dos mais descrentes de que alguma coisa possa mudar. Está convencido de que é tudo “conversa para boi ver”.
O começo da vitória A história de Fortes foi parar aos jornais a seguir a Rosa ter adoecido. E, dias depois, o casal foi contactado pela fábrica – que já antes lhes tinha proposto a compra o monte. Agora, a oferta era outra: “Davam-nos 500 euros por mês, durante 30 anos, para alugarmos uma casa fora daqui”, conta Francisco. Recusaram, com receio de que, entretanto, a empresa mude de mãos e fiquem sem nada. Mas, há duas semanas, o casal fez uma proposta, por escrito, à AZPO: reclamam o reembolso das despesas de saúde e os 500 euros mensais durante 30 anos pagos numa única tranche. Se a empresa concordar, Rosa e Francisco vão-se embora. Querem comprar uma casa longe de Fortes.
A mediatização trouxe grupos de deputados de quase todos os partidos à aldeia, nas últimas semanas. E PSD, CDS, PCP, Bloco de Esquerda e Os Verdes deram entrada com cinco projetos de resolução na Assembleia da República para que sejam tomadas medidas. Os deputados querem estudos ambientais e de impacto da laboração da AZPO nas águas, nos solos e no ar e reivindicam um estudo epidemiológico, bem como a “correção” de “eventuais ilegalidades”.
Os cinco projetos foram discutidos ontem na Comissão de Ambiente, e Fátima, Rosa, Helen e Michael, este último um casal de ingleses que comprou casa em Fortes há dez anos, foram a Lisboa assistir ao debate, em representação dos vizinhos. As propostas deverão ser aprovadas em plenário amanhã ou na sexta-feira da próxima semana. À saída da comissão, Fátima sorria: “Nunca imaginei que conseguíssemos chegar até aqui”.
Do lado da fábrica, começam a chegar garantias. Fonte oficial da AZPO admitiu ao i que houve “emissões [de gases] em excesso”, explicando-as com “uma avaria pontual, fruto de um ato isolado, que nunca tinha sucedido” antes. A fábrica promete executar “um ambicioso plano de investimento” nas instalações de Fortes, no valor de um milhão de euros. Os melhoramentos, diz a empresa, ficarão concluídos “muito em breve”, estando a reabertura prevista para outubro, a tempo da próxima campanha e garantindo, assim, o emprego dos 30 trabalhadores que foram mandados para casa.
“A AZPO tem como princípio e política de atuação o constante diálogo com todas as entidades”, esclarece ainda a empresa, recordando que é “o principal empregador” do concelho de Ferreira do Alentejo.
“É possível viver em harmonia com os habitantes da aldeia”, remata a mesma fonte oficial. Do lado dos moradores, também se pede paz. “Nunca, em algum momento, quisemos que a fábrica fechasse. Só queremos ter condições de saúde e para viver e acreditamos que é possível conciliar a existência deles com a nossa”, defende Fátima Mourão.
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